Educação
Uma educação humanista deve estar atenta a realizar-se como uma permanente oficina de experiências interativas de criação partilhada de e entre saberes. Uma oficina de criação, reflexão e atividade postas em diálogo. O lugar onde o valor dos sentimentos, das intuições e da inteireza interativa de cada pessoa e de cada grupo da comunidade aprendente devem ser substantivamente levados em conta.
Através de nossa participação ativa e criativa num acontecer que torna a “turma de alunos” uma “comunidade aprendente”, que nós criamos e partilhamos com os outros um momento de construção de saberes a partir do qual nós internalizamos “o nosso próprio saber”. Assim, a aquisição pessoal de novos conhecimentos, mesmo quando parece algo simples ou “virtualmente” simplificado”, e alguma coisa sempre criativa, mais livre e mais indeterminada do que supomos quando “ensinamos”. Se em todo o processo de aprender há uma lógica, em toda a lógica do aprender existe uma história de partilhas.
Só ensina como um educador quem “convida ao saber”. Quem abre portas e janelas em múltiplas direções. Quem aponta os caminhos e deixa ao outro a liberdade da escolha. Quem, ao invés de dizer aos seus alunos que já chegou a um lugar definitivo do saber, do conhecer, do “dominar os seus assuntos”, etc. declara que também se sente incompleto e inacabado. Que também está estudando enquanto ensina e, portanto, aprendendo com os outros e não apenas ensinando a eles.
No diálogo que a sala-de-aula deve estar sempre criando e recriando, não existe saber algum que possa vir a fazer-parte-de-mim, se ele não for o despertar de algo novo já existente “dentro de mim”. E também na minha relação com os meus alunos. Assim, um verdadeiro “dentro de nós”. Este é um outro modo de dizer que todo o ato de conhecimento é um gesto de criação através de uma multiaprendizagem. Um aprender partilhado por várias pessoas que vivem aquilo-que-se-está-aprendendo desde o seu ponto pessoal de vista.
A sala-de-aulas de uma “comunidade aprendente” não é como um grande barco em que alguns trabalham para levantar a âncora, para inflar as velas e para dirigir o leme, enquanto outros apenas são levados pelo barco. E são conduzidos sem saber bem para onde vão, e porque. Ela se parece mais com veleiro no qual todos são a tripulação. E, assim, fazem juntos o que dá ao barco o seu rumo, e às velas o seu sentido. Um barco em que o próprio comandante reconhece que é um tripulante entre todos. E sabe que a viagem somente avança com o trabalho comum, de que todos participam.
A educação e a aprendizagem devem ser pensadas como um exercício ao mesmo tempo “dificultoso” e “saboroso”. Não há processo de ensino quando não há desejo de aprender. Não há desejo de aprender quando não há um motivo profunda e afetivamente pessoal dirigido ao aprender. A educação deve ser uma vivência prazerosa em si-mesma (e não em um eterno “depois”). E não pelo que pode acrescentar a cada um de seus integrantes, pessoalmente, mas pelo que pode e deve estar sempre criando e recriando em um sentido cultural e em uma dimensão solidária. O meu saber e o aumento do meu saber só valem de alguma coisa se aumentam e melhoram as minhas possibilidades de diálogo com os meus outros.
Nós podemos fazer um esforço de imaginação e de ação solidária para descolonizar um pouco mais a educação da pedagogia e, mais ainda, do pedagogismo isento de diálogo com outras maneiras de sentir, pensar e praticar a vocação de ensinar-e-aprender. Não permitir que a educação seja pensada apenas como algo que existe entre a ciência-e-a-técnica. Relativizar o seu teor dominante de uma tardia e limitante escolha centrada no didático-científico – aquilo que se resolve no “prosaico”, lembrado por Edgar Morin – em nome de uma vocação equilibradamente também dialógico-poética. Ou mesmo “poiética”. Saibamos poeitizar a educação e poetizar a escola.
Podemos aprender a desapressar o aprender. A retardar o que-saber-para-fazer em nome do como-viver-para-ser. Dar mais e melhor tempo a lentas e humanizadas progressões escolares, e abrir mais momentos ao poético por oposição ao prosaico; ao devaneio por oposição ao conceitual (como em Gaston Bachelard), ao amorosamente dialógico, por oposição ao egoisticamente monológico, ao poiético = a construção da poesia-de-si-mesmo na pessoa de cada aluna/o, por oposição ao pragmático = a mera instrução do indivíduo para produzir apenas… coisas.
Como educadoras, devemos aprender a recriar o direito ao improviso, ao imprevisível, ao criativo, remando contra o pré-estabelecido, o previsto, o previsível. Podemos conspirar contra a mecanização do ensinar, como aquela que se estabelece em cima de programas de curso rigidamente pré-montados e empacotados.
Devemos retomar as aulas e diálogos criados a partir de roteiros fluidos a serem construídos no próprio momento da aula ou da fala. Assim, devemos aprender a relativizar o primado crescente das “aulas datashow” e aprender a utilizar criativamente os aportes da informática em nome de um saber criativo e elaborado no momento do ensinar-aprender. Um com-saber com pleno direito ao improviso de parte do professor e de alunos.
Assim, saibamos redescobrir e retomar a aula em que a fala de parte a parte constrói o seu próprio saber, ou invés de reduzir-se a um repetitivo empilhamento de informações prontas e não aberta à criação do debate e da descoberta do sabor do saber no acontecer do ensinar e aprender.
Na sala-de-aulas e na escola devemos aprender a abolir ou reduzir as competições e as concorrências. A escola não é um estádio e nem a educação é uma olimpíada. Devemos colocar em segundo plano, ou mesmo eliminar as competições e, sobretudo, as “ranquicisações”, em nome de uma escola de partilhas e de construções coletivas, solidárias e não comparáveis em termos de escalas e hierarquias. Assim, saibamos relativizar a individualização competitiva, em favor de uma individuação cooperativa. Abolir ou reduzir as premiações excludentes (nos pódios sempre só cabem três), os “quadros de honra”, os “primeiros colocados” e o silêncio a respeito de “todos os outros”.
Quando será que a escola e a educação irão atribuir valores e prêmios para os mais solidários, os mais “abertos-ao-outro”, os mais cooperativos e capazes de dialogar em e entre equipes, em lugar dos solitários obcecados por seu exclusivo desempenho individual e por suas medalhas? Afinal, queremos produzir homens-máquinas para os poderes do mercado, ou pessoas humanas para a construção de uma sociedade generosamente humanizada?
Ousemos repensar a pedagogia como a arte de criar, gerar, partilhar e fazer circular saberes. Como o território do encontro aberto a desafiar pessoas e grupos de pessoas a aprender e integrar conhecimentos, e de acolher informações apenas de forma complementar e acessória à construção pessoal e coletiva de saberes. Não esquecer que aprender é criar saberes junto-com-o-meu-outro, para depois interiorizar a minha parte pessoal de um com-saber solidariamente construído.
Saibamos retomar e rever a trajetória que vai da informação (o que se adquire e acumula manual e instrumentalmente sem reflexão e partilha) ao conhecimento (aquilo que interioriza através de diálogos reflexivos e críticos com outros) e chega finalmente ao saber (aquilo que se cria apenas em situações de partilha e que flui entre todos, sem ser uma posse de ninguém).
Deveríamos re-centrar o processo do ensino-aprendizagem no “acontecer do aprender”. E recolocá-lo no interior da vida de equipes e na experiência pedagógica do criar-entre-nós. Assim saibamos transformar a sala-de-aulas e a turma-de alunos em uma “comunidade aprendente”. Uma pequena e viva comunidade centrada no trabalho de cada pessoa-com-os-outros; e não no esforço egoísta do indivíduo-contra-os-outros, à margem da equipe, da turma, da pequena e ativa comunidade que sabe o que aprende… e que aprende o que constrói.
Ousemos re-vivenciar a experiência do aprender como um trabalho realizado também sobre a reminiscência, sobre a lembrança do vivo e do vivido, sobre a memória do partilhado em interação com o que está acontecendo aqui-e-agora. Assim saibamos trabalhar para que o foco do ensinar-aprender parta não apenas de um concreto-abstrato dominado pelo professor e subordinado à rotina de um programa”. Mas que seja algo vivo e rememorado em-e-entre situações pessoais e interativas vividas e pensadas pelos alunos desde a experiência de momentos-foco de vidas cotidianas.
Sem temor algum, saibamos recolocar o foco da educação naquilo que até a algum tempo atrás costumávamos chamar de “espiritualidade”, de “vida interior”; de “busca pessoal e interativa do bem, do belo e do verdadeiro”. Por que será que estes profundos e ancestrais valores da trajetória da humanidade no Planeta Terra, parecem hoje algo “do passado” em tempos em que a eficácia do momento, a superficialidade competente e a descartabilidade de tudo e de todos parece a cada momento colonizar mais espaços de nossa própria… vida interior?
Saibamos relativizar a tendência crescente a funcionalizar a educação para capacitar o competente-e-produtivo, em nome de nossa vocação de educadores, centrada no re-humanizar a educação para formar o consciente-criativo.
Recoloquemos no foco da educação no diálogo constante da comunidade aprendente com não apenas a informação útil e disponível – como o “inglês funcional”, para aprender a falar com máquinas e com empresários – em nome de um saber transbordante e desafiador – como aprender inglês para ler Shakespeare e Robert Frost. Dediquemos menos tempo a lidar com fragmentos de poesia-instrumental para ensinar gramática-funcional a estudantes apressados, e logremos dispor de mais tempo-vivo-na-escola para trabalhar gramáticas-profundas e filosofias das ideias, para criar leitores atentos e fervorosos de Cecília Meireles, de Clarice Lispector, de Adélia Prado, de Rubem Alves, de Marilena Chauí e de João Guimarães Rosa.
Saibamos criar currículos em que a música recobre o seu lugar na sala de aulas, e dialogue por igual com a matemática. Que a dança dance com a geografia, e ambas criem territórios de vida, e não de informações sobre a vida. Deixemos que a poesia seja um dos motivos de se ensinar “língua pátria”. Se necessário, aprendamos com Leonardo da Vinci, Gaston Bachelard, Roland Barthes, Antônio Cândido, Heitor Villa-Lobos, que a arte não é um saber ocioso destinado às horas de recreio, ou de atividades para-escolares. Ela é um outro saber. Ela poderá vir-a-ser um saber tão humanamente profundo quanto o conhecimento das ciências. Ciências que quanto mais se fazem densas e desafiadoras, tanto mais se aproximam do mistério, da filosofia e da arte.
Saibamos levar as integrações-interações entre saberes para além do meramente “transdisciplinar”. Assim ousemos nos abrir ao todo e ao complexo da “sabedoria do mundo”. Levemos a sério a proposta de uma educação multiculturalista ao seu ponto limite. A um lugar de efetiva fronteira-de-diálogo entre os saberes-de-ciência (ocidental e acadêmica) e os saberes-outros. Todos os outros saberes. Os saberes de Cambridge e Nova York ameaçam mais a nossa felicidade e a nossa sobrevivência do que o dos Aymaras e os Guarani.
Realizemos isto a partir do pressuposto de qualquer outro saber vindo de qualquer outra cultura é não tanto uma “forma curiosa e interessante de pensar e viver” ele é em-si-mesmo e para-nós uma outra fonte original, interativa e complexa de lição do mundo e da vida. Outros saberes, outras sensibilidades, outras criações cultuais de compreensão do humano, da vida e do mundo em que a vivemos, apenas diferentes, mas em nada desigualmente “menores” do que o que culturas eruditas do Ocidente produziram.
A partir do aporte de saberes de tradições “de longe”, aprendamos a aquietar um tanto mais a educação, a serenar a pedagogia e a pausar a didática.
Talvez o agito das salas de aula e a violência da escola diminuam com a inclusão de momentos de “nada fazer” na escola. Momentos de criativa serenidade em que é dado a tudo e a todos o direito de estar-na-sua, serenamente meditando ou aprendendo com aulas de Tai-Chi. Aulas em que ninguém compete com ninguém, mas cada uma se harmoniza em conjunto com outros. Trazer para o centro da escola práticas destinadas a tranquilizar o espírito e a serenar o corpo de dentro para fora.
Será que boa parte do que torna nossas alunas “agressivas” e as nossas escolas “violentas”, não virá do estarmos trazendo para dentro da escola a mesma lógica, a mesma pressa, a mesma competitividade exaustiva, a mesma ética (ou pseudo-ética) e a mesma sensibilidade do competitivo-competente de um mundo-de-mercado que nos coloniza e que dia-a-dia ameaça colonizar todas as esferas entre a sociedade e a educação, entre a educação e a escola, entre a escola e cada uma de suas habitantes?
Estejamos atentos a não transformar uma educação integral, algo que ao invés de integrar pessoas criativas, desintegre ainda mais indivíduos agitados através de um acúmulo “em tempo integral” de atividades sucessivas, apressadas e competitivas.
No seu sentido mais radicalmente humano e, por isto mesmo, mais transformador, recoloquemos a política no centro do que se vive na escola. Política com o sentido de cuidado da “polis”. Quando falamos em educação cidadã, ela é isto: o aprendizado vivido e vivenciado da corresponsabilidade pela gestão coletiva e amplamente participativa nos destinos de grupos humanos locais, de comunidades, da cidade, da nação e de todo o mundo. Política como partilha do processo de transformar pessoas – o “conscientizar” em Paulo Freire – para criar, a partir também da escola e desde a infância, seres humanos com um sentimento e um saber de liberdade e de autonomia. Logo, saberes de partilha, participação e cogestão ativa e solidária dos processos de transformação de nossos mundos de vida e de destino.
Assim, retomemos a ideia do destinar uma educação humanista e radicalmente integral e popular, à vocação de formar sujeitos conscientes-cooperativos para a transformação humanizadora da sociedade. E, não, sujeitos competentes-competitivos para a reprodução da lógica e do poder do mercado do capital.
Ousemos pensar uma educação para além do meramente “inclusivo”. Uma educação voltada com prioridade ainda e sempre (ou até quando for preciso) ao serviço aos “deserdados da Terra e da terra”. Uma educação esquiva aos poderosos e voltada aos pobres, aos excluídos, ao povo e nossos povos, enfim, que o nosso labor como educador esteja preferencialmente dirigido.
Façamos retornarem a escola e a educação a práticas do cotidiano que em suas diferentes escalas remam contra os saberes, valores e poderes do capitalismo e do mero mundo dos negócios. Associar a educação integral a processos conduzidos por movimentos sociais e populares de frentes de luta contra a desigualdade, a exclusão, a acumulação de riquezas, à exploração do trabalho e da pessoa que trabalha.
Ousemos abrir a escola, primeiro para os seus “territórios-do-entorno”, aquilo que gosto de chamar de “comunidade de acolhida”; o lugar mais sociocultural do que meramente geográfico em que a escola está inserida. Depois, acolher em seu interior e dialogar com antigas e novas modalidade de viver-a-vida, como a economia solidária, a simplicidade voluntária, as frentes populares de ação social.
Desde as práticas do cotidiano, pensemos os termos concretos e a prática de educações libertárias, uma educação em busca de construção de si- mesma como lugar de criação de formas novas e renovadoras de solidariedade interativa e de um socialismo de fato humanista e humanizador.
Retornemos a educação a uma vocação de fato mais culturalmente “natural”. Em um tempo em que as telas e as conexões eletrônicas parecem deslocar a realidade do mundo da vida do vivencial para o virtual, ousemos aprender a retomar os caminhos de genuínas experiências-de-partilha-da-natureza. Talvez tenha chegado o momento de pensarmos – entre tantas teóricas inovações didáticas – se a escola não deveria voltar-se mais a ser parecida com um “acampamento de escoteiros” do que com um “laboratório de internautas”.
Partamos da ideia de que, se quisermos, somos e seremos nós e os nossos educandos-herdeiros, aqueles a quem cabe a continuidade e a densidade do trabalho de transformarmos as nossas vidas, os nossos destinos e os mundos cotidianos e de história, em que partilhamos nossas vidas e destinos.
Lembremos, enfim, que somente haverá “um outro mundo possível”, quando, passo a passo, existir em nós e entre nós, um outro ser humano possível. E este outro ser humano mais humano e humanizador somente existirá quando soubermos criar uma outra educação.
A finalidade da educação é, essencialmente, o desenvolvimento humano e a sua plena realização. A pessoa humana em sua real concretude, as comunidades de vida humana cotidiana e os povos da terra, mas do que o mercado de trabalho do mundo dos negócios, são o seu primeiro destinatário e a razão essencial do seu exercício.
Assim como o ser humano não se destina a coisa alguma, além de si-mesmo, da partilha da felicidade de/entre pessoas livres e solidárias, assim também a educação da pessoa humana não está destinada com prioridade a nada, além de sua própria realização através da plena formação de todas e quaisquer pessoas.
Não se educa essencialmente “para o trabalho”, “para o estado”, “para o mercado” ou até mesmo “para a vida”… uma vida sempre “futura” e sempre inalcançável. Educa-se para criar perenemente pessoas destinadas à experiência do saber. O saber e a criação pessoal e solidariamente dialógica do saber através da partilha de sentimentos e saberes, sentidos e significados, é a primeira vocação da educação.
Toda educação que instrui, mas não educa; que capacita, mas não forma, apenas habilita quem aprende para ser o sujeito competente e competitivo dos projetos de vida a serviço do mundo dos negócios da sociedade do mercado. Esta pode ser uma capacitação para o êxito e o sucesso, segundo os termos do mercado de bens e de capitais. No entanto, ela é uma forma de contra-educação, frente à uma vocação pedagógica dirigida ao diálogo solidário, à gratuidade e à partilha amorosa de bens, de serviços, de sentimentos e de sentidos.
A educação existiu e segue existindo sempre em um mundo de escolhas culturais de diferente valores e teores políticos. Ela deve voltar-se a ser um instrumento da criação e consolidação de culturas políticas de construção (bem mais do que de “colonização”) do presente e do futuro. Viver um absoluto agora, em sua plenitude, e ser educado para saber viver a cada momento a felicidade de um “agora compartido”. Mas sentir-se corresponsável pela construção de um mundo de futuro cada vez também mais capaz de abraçar todas as pessoas e todos os povos em uma vida de felicidade.
Assim sendo, o essencial em um projeto de educação emancipatória (solidária, cidadã, libertadora, etc.) é a possibilidade de que os seus sujeitos educandos é a formação de pessoas destinadas a se engajarem em frentes de luta social em nome da justiça, da solidariedade, da liberdade, da inclusão e, em suma, do direito universal de partilha da felicidade entre todas as pessoas e povos da Terra.
Olhar e sentir o outro como um igual e, relacionar-se com ele movido pelo sentido da partilha de um tempo-de-vida, bem mais do que por um motivo de uso do outro em proveito próprio, mesmo quando justificável. A esta vocação bastante mais branda do que as das passagens evangélicas que enfrentamos linhas acima, podem ser atribuídos nomes como: “aceitação”, “acolhida”, “amizade” e, no limite “amor”. E que ele não seja um sentimento de introspecção de afetos, mas uma emoção ativa que estabelece o aprendizado gerador da socialização, geradora, por sua vez, da própria vida social. Não é apenas que sem o amor não podemos viver individualmente. Sem o amor não podemos criar os mundos de vida social em que possamos viver.
Da casa à escola, dela às equipes e unidade sociais de trabalho, ou do que quer que seja, o fazer humano é gerado por e através de gestos interativos, assim como por atos sociais decorrentes de uma vocação cooperativa original. Se nossas vivências interpessoais e se os mundos de vida social, que através delas criamos e transformamos, negam em parte ou no seu todo uma tal vocação humana original, deverá ser porque talvez tenhamos perdido, ou estejamos perdendo, aquilo que faz parte de nossa própria origem.
Um “outro mundo possível” que está em nossas mãos construir – a duras penas e remando contra a corrente, bem sabemos – e que venha aos poucos a ser regido por princípios e valores em tudo opostos aos do “mundo do mercado”: a confiança, a coragem de ser, a gratuidade, o dom, a reciprocidade solidária e a cooperação. Um mundo em que o competitivo-competente do ideário capitalista de lugar ao cooperante-consciente, de “um outro mundo possível.
Impossível pensar uma relação autêntica entre pessoas, em qualquer contexto da vida social do lar à fábrica, passando pela escola em que as pessoas não aspirem criar cenários interativos regidos pela aceitação do outro e pela partilha do amor. Tanto isto é verdadeiro, que meia hora vivida em um “ambiente agressivo” pode ser uma experiência dolorosa ou até mesmo insuportável. Frente a um mundo regido pelo ganho e a ganância, e que se nos aparece entre a televisão e os cartazes de rua, como um fascinante universo de grandes “proveitos e conquistas” para quem seja capaz de viver o dia a dia em estado de guerra, necessitamos com urgência a prática de uma outra coragem.
Trata se, enfim, de chegar ao reconhecimento de si mesmo como uma parte, um elo, um momento do fio da teia que tudo tece e a tudo dá o seu lugar e, em outros planos, os seus nomes e o seu significado. E se esta experiência pode ser alcançada, o seu caminho único é o crescimento do amor na pessoa. E se ela pode ser afinal compreendida e até mesmo posta em palavras, elas deverão ser palavras nascidas no amor e torna das significantes através dele. Pois aqui tudo parece ser ao mesmo tempo tão simples, tão natural, tão ““… e como poderia ser de outra maneira? ”. E também tão inédito e tão absoluto, pois somente o mais pleno, o mais absoluto e também o mais naturalmente humano de todos os sentimentos poderia alcançar viver afetuosamente a compreensão do que “está acontecendo comigo”.
Aprendemos a saber uns com os outros, porque o movimento biologicamente original em nós é o desejo da presença do outro. E é a partilha com ele da experiência do estar–com. Ser humano é desejar a aventura do compartir em-mim a presença de meu-outro. E dividir com ele um momento, ou toda uma vida sem outro proveito que não seja o puro e gratuito desejo de conviver e compartir.
Tudo o mais são derivações deste movimento essencial. Não aprendemos a reciprocizar e a partilhar apenas como uma estratégia cultural inevitável e geradora de alianças entre grupos através de seus indivíduos, e de comunidades através de seus grupos. Não raro a antropologia pensa assim porque ela está atenta apenas à dimensão sociocultural de nossas vidas. Se assim procedemos culturalmente, é porque natural e geneticamente somos a espécie animal que ao se hominizar assim o fez, passo a passo. E entre acolhida e hostilidade, aprendeu a ascender do poder sobre o outro ao amor pelo Outro.