Saber

Cada ser humano, como você, como eu, como nós, é um eixo de interações do mistério do ensinar-aprender. Assim, quem quer que seja, cada pessoa é em si-mesma uma fonte original de saber, de sentidos, e de sensibilidade. Em cada momento de nossas vidas estamos sempre ensinando algo a quem nos ensina e estamos aprendendo alguma coisa junto a quem ensinamos algo. Ao interagir com ela própria, com a vida e o mundo e, mais ainda, com círculos de outros atores culturais de seus círculos de vida, cada pessoa aprende-e-reaprende. E, assim, cada uma de nós é um sujeito social culturalmente socializado, de um modo ou de outra. E é, portanto, uma experiência individualizada ou pessoalizada de sua própria cultura.

Todo o conhecimento não vocacionado ao diálogo entre saberes e entre diferentes criadores de saberes – inclusive os situados fora do campo das ciências acadêmicas e dos saberes autoproclamados como cultos e/ou eruditos – não tem mais valor do que o de sua própria solidão.

As ciências da natureza aprendem a relativizar teorias, a pluralizar compreensões, a subjetivar métodos e a descobrir e compreender através do diálogo entre diferentes “leituras do real”, e não através de monólogos de certezas. Tomam, portanto, um como modelo de teoria e prática, a atualidade dos dilemas das ciências humanas. Isto não significa uma inversão de domínio, pois o sentido de domínio deve deixar de existir aqui. Significa que de um lado e do outro o avanço da compreensão está relacionado a um progressivo e irreversível abandono das variantes do positivismo científico e lógico, da redução da compreensão à experimentação, e do exercício da experimentação como uma manipulação de “sujeitos sobre objetos”.

O aprender-a-saber não envolve um acúmulo ou uma estocagem de representações manipuláveis em seus conjuntos, na medida em que pensamos ou quando memorizamos alguma coisa. Isto pode acontecer quando aprendemos um novo “programa de computador”. Mas, mesmo neste caso sabemos que à medida que aprendemos mais e “dominamos o programa” de uma maneira mais pessoal, transformamos um aprendizado mecânico e funcional em um saber criativo e até mesmo pleno de arte.

Cada pessoa aprendente é um arquiteto de seu próprio saber. Mas é alguém que apenas “se constrói” quando vive em relação com os seus outros. É sobre a base de interações, e de uma história compartilhada de trocas, de reciprocidades, de criações fruto de diferentes situações de diálogos, que cada estudante cria-com-outros uma experiência de conhecimento-em-comum, a partir do qual ele se apropria daquilo a que damos o nome de “o seu próprio saber”.

Um fator bastante esquecido entre educadores, é a extraordinária capacidade humana de criar mundos próprios. De internalizar sentidos e sentimentos originais. De antecipar criativamente situações. Enfim, de realizar todo um riquíssimo e muito complexo trabalho intenso e profundo, dirigido à nossa autoequilibração.

Ora, sabemos que aprender é integrar novos dados, novos fatos, novas sensibilidades, novos saberes. E integrá-los não a regiões ou lugares específicos em nosso cérebro, ou onde quer que seja – inteligência corporal, inteligência emocional, inteligências múltiplas etc. – mas em uma totalidade interior que se enriquece a cada novo saber, na mesma medida em que se reintegra e se reequilibra em uma dimensão mais densa e complexa, a cada conhecimento significativo.

Como não “se dá” conhecimento, todo o conhecimento “adquirido” é, na realidade, uma criação pessoal vivida em uma relação interpessoal (mesmo que o outro-que-me-ensina esteja escrito em um livro). Aprender e criar são sinônimos absolutos. E mesmo em uma situação pequenina, criar é como pronunciar pela primeira vez a fórmula mágica que torna real a própria magia. Assim, podemos ousar pensar que todo o ato de criação contido no gesto de aprender é também uma espécie de milagre.

Em uma escala ainda mais generosamente aberta pedagógica –dando a esta palavra o seu sentido mais amplo, mais envolvente – podemos imaginar que viver significa estar continuamente participando de situações de reciprocidades de saberes e de aprendizagens. Viver e conviver é partilhar e contribuir para um contínuo trabalho de intercâmbios de algo-bom-para-saber. E, algo que, uma vez sabido e compreendido possui o dom de nos transformar em um alguém sempre algo melhor.

Somos seres aprendentes, é preciso relembrar. E isto nos define muito mais como seres humanos do que o sermos seres racionais. A própria racionalidade é uma operação contínua do aprendizado. É muito importante distanciar a inteligência da pura racionalidade e opô-la à emoção e à vida. Ao contrário, nosso corpo e nossa mente, nosso cérebro e nosso espírito aprendem em todos os planos para serem, em todas as dimensões, a pessoa que realizamos em nós a cada momento.

Tudo o que está em nós: o corpo, o cérebro no corpo, a mente no cérebro, o espírito humano na mente, as diferentes modalidades de inteligências (palavra que não deve ser dita no singular), inclusive a inteligência emocional, acontece em nós como o resultado de um imenso e complexo trabalho de multiaprendizagem da espécie de que somos uma realização pessoal.

O pensamento é a aventura de si mesmo. É uma pergunta em busca de respostas. É um eixo, um feixe, um emaranhado que faz e refaz o bordado dos tecidos sem-fim da mente. Um tecido-do-saber a que sempre podem ser acrescentados novos fios, e para o qual sempre podem ser imaginadas novas formas e novas urdiduras.
Pensar é estar aberto a ver-se sempre reaprendendo a ver-o-mundo.

Quanto mais uma pessoa aprende, mais é capaz de pensar por conta própria. Mas aí é quando mais ela descobre que precisa dos outros para existir, e que só avança através do diálogo e para realizar-se como diálogo.

Assim, quase podemos dizer que a informação é o que eu acumulo, o conhecimento é o que eu aprendo e o saber é o que eu troco. O que eu partilho e continuamente faço fluir através de mim. De algum solidário modo posso dizer que eu não possuo saberes, como possuo uma ou muitas informações. Aprender a saber, dentro de uma perspectiva intertranscultural, significa saber integrar-me em círculos cada vez mais amplos e diferenciados de “sabedores”. De pessoas sábias, no sentido mais humano da palavra. Pois elas sabem que o seu saber é algo vivo e existente nelas (ou “em mim”) sob a condição de fluir por e entre elas. Entre a informação, o conhecimento e o saber há saltos de qualidade entre o que eu aprendo e possuo individualmente e o de que eu participo, interativa e solidariamente.

O saber múltiplo, multifocal e pluriespecializado acumula conhecimento compartimentado e fragmenta o seu poder de gerar sabedoria. Há uma progressiva perda de três fundamentos essenciais para uma compreensão do mistério e do sentido do todo unificador em todos os planos da existência: a integração entre diferentes campos e domínios das diversas ciências; a interação entre tipos e vocações do saber, como os da ciência, os da filosofia, os da arte, os da espiritualidade e os da religião; a indeterminação, isto é, o sentido de que em todos os seus planos e dimensões, o existente dado ao conhecimento não é plano, não é mecânico, não é mecanicamente previsível, e não é redutível a fórmulas finais de explicação.

A razão de ser do saber é criar elos de comunicação na corrente da vida em todos os seus planos e em todas as suas dimensões. É criar eixos fraternos de interações fecundas. É gerar de maneira contínua e crescente situações de diálogo entre nós, seres humanos, assim como entre nós e todos os outros seres da Vida, assim como entre a Vida e o mistério da Terra e do Cosmos.

Tudo o que construímos como saber humano e como conhecimentos específicos deste saber, é ainda uma pequenina parte do que sempre inevitavelmente restará a saber. Quanto mais certezas alcançamos e possuímos, mais elas nos abrem ao incerto, ao incomensurável do desconhecido. Quando mais conhecido, tanto mais consciência das dimensões do desconhecido, sempre inevitáveis e sempre abertas a nós. Pois o desconhecido não é nosso limite, e nem é a porta fechada ao saber humano. Ele é o caminho sempre adiante. É a porta aberta a uma mente reflexiva.
Somos seres de uma família, de um clã, de uma cidade, de uma nação, de um povo e de uma pátria. Mas as diferentes dimensões sociais que nos dão identidades e nos situam no Mundo e na Era em que vivemos, são circuitos parcelares de nossa verdadeira vocação. E nela somos nativos e habitantes de uma mesma nave-casa: a Terra. Ela é o nosso berço verdadeiro e é o nosso lar. Abrigou o nosso nascimento e acolherá a nossa morte. Ela é o lugar no Universo que nos torna seres de todo o Cosmos.

Ousemos alargar sempre mais as fronteiras do diálogo, eis toda a nossa vocação humana. Não estamos devotados à destruição. Somos seres da espera e da esperança. A esperança está sempre adiante, no horizonte dos passos a caminhar, e está no absoluto presente de cada momento. Somos seres destinados a retornar a um sentido pleno de vida abundante, de vida fraterna, de vida plena em todos os planos da Vida. A esperança é o nosso lugar de partida. Ela é a realização completa dos nossos sonhos possíveis agora, e agora ainda provisoriamente inalcançáveis, mas nunca impossível de vir a ser um real construído por mãos, mentes e corações humanos. A esperança é o ponto de chegada e é o reinício do caminhar ainda, mesmo depois de haver chegado.

O que é importante não é apenas melhorar tecnicamente o ensino, ou torná-lo mais conscientemente político e libertador. Principalmente jamais para torná-lo mais produtivo, mais eficaz, mais eficiente e mais ajustado ao mundo dos negócios e das mercadorias. O que é importa é humanizar e reencantar os cenários, os gestos e as experiências onde e com que vivermos e partilhamos qualquer dimensão daquilo que chamamos: educação. Criar política e pedagogicamente, ética e esteticamente espaços, interações e entre-cenas de vidas de pessoas livres e felizes. E não pelo que aprendem, ouvindo de outros, mas pelo que criam como co-saberes e co-valores, co-vivências, na medida em que, criam, elas próprias, as pessoas-que-são, e os mundos de vida cotidiana em que vivem crítica, ativa, solidária e encantadamente.

E, assim, podemos crer que aprender é apenas o exercício de atribuir nomes, normas e significados ao que eu vivo, afetiva e afetuosamente, ao conviver com outras pessoas junto a quem aprendo não tanto com elas, mas entre elas. Perguntem a uma criança que mal começou a estudar em uma escola, ou perguntem a um velho que deixou a sua há muitos e muitos anos, o que eles lembram de um dia ou de uma vida de estudantes. A resposta refletirá quase sempre um clima afetivo, um teatro de interações entre atores. Os saberes, esquecemos quase todos. Os gestos e os momentos de troca de afetos, nunca.

Palavras como: sentimento, afeto, emoção, amor, imaginação são raras na pedagogia e nas ciências sociais de até alguns anos passados. Algumas vezes, quando as três primeiras apareciam aqui e ali, era sob a forma de expressões inevitáveis do comportamento humano, cujo controle era essencial tanto para a saúde da “pessoa de bem”, quanto para a de uma sala de aulas. “Controlar as emoções”, “dominar os afetos”, “submeter os sentimentos à inteligência”, “frear a imaginação” foram preceitos éticos e didáticos que, sobretudo os “veteranos educadores”, como eu mesmo, ouvimos por vários anos.

À direita e a esquerda de qualquer projeto de educação situado no interior de qualquer proposta cultural destinada à preservação ou à transformação de qualquer modelo de sociedade, tem sido dito e repetido entre nós que a “nossa” seria a geração do trânsito de toda uma humanidade do trabalho, para uma humanidade do saber.

Frente ao domínio crescente da indústria da informação da “sociedade do espetáculo”, regida por uma cultura da informação, uma outra e divergente direção seria a de uma cultura da comunicação. Ela possui os seus alicerces fundados em uma nova e inovadora ecologia da mente. Uma nova pedagogia estabelecida sobre uma formação da pessoa humana como ser destinado a criar o que aprende, e não a aprender o que lhe é imposto como algum saber pragmaticamente consagrado… e empacotado. Crianças, jovens e adultos liberados do temor do Outro, e vocacionados ao diálogo, à partilha da Vida e à cooperação construtiva entre atores sociais para quem o fruto do trabalho não se esgota na produção para o mercado, mas na construção de um Mundo capaz de libertar o homem da servidão imposta pelos interesses e pela lógica do empresário.

No âmbito de uma cultura da comunicação o conhecimento deve ser lido e vivido como consciência. E a consciência deve ser compreendida como o “sentir pensar” desde toda inteireza do ser humano. Algo vivido como o saber que se integra não na esfera racional e academicamente pensante da pessoa que estuda e que decora aprende, mas como o saber que interage com o todo de seu próprio Ser. O saber “sentipensante” que transforma quem aprende e conhece em sua totalidade. Que torna a “coisa” aprendida e conhecida, não propriamente uma coisa de que se apropria e que se usa, ou uma posse que se acumula e vale porque é “o meu saber”, como tem sido constituído e apregoado cada vez mais como a razão de ser do aprender, dentro de uma crescente lógica pedagógica utilitária.

Todo o contrário! O aprender deveria ser vivido uma aventura da mente. Como algo que transforma o saber adquirido e partilhado em um complexo e dinâmico fluxo de conhecimentos, de sensibilidades e de significados destinados a estabelecer níveis e dimensões cada vez mais ilimitadamente abertos ao enriquecimento de três esferas de comunicação e diálogo.

Porque não partir do princípio de que a razão de ser da educação não está situada sempre “fora dela mesma”; sempre no que ela “produz para” e, não, do que ela “faz acontecer em?” Porque não conceber que o destinatário da educação não está situado aquém ou além de qualquer lugar natural ou social que não seja a própria pessoa e o seu desenvolvimento humano?

Na verdade somos seres sempre aprendentes. Seres que não acumulam conhecimentos em estoques utilitários de competências apropriáveis pelo mundo do mercado. Somos seres que se transformam continuamente enquanto aprendem, e porque aprendem. E não durante um tempo pré-determinado de nossas vidas, mas ao longo de todos os ciclos da Vida, pois somos seres aprendentes em processo, bem mais do que apenas seres racionais, como um produto.

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