Paz

A paz é uma construção que pessoas em interação realizam em suas vidas, nos seus cenários de vida e em sua história, a cada dia, e em cada momento e situação de cada dia da vida de todos os dias. Na experiência humana a paz é a realidade mais original. Pode vir a ser também a mais frágil e a mais instável. Mas como uma vocação humana, ela é a mais aventura mais inevitável.

A criação da Paz não é uma experiência que possa ser estendida por alguns sábios, místicos ou governantes para ser vivida por e entre as outras pessoas. Ao contrário, somos todas e todos nós as pessoas da vocação da Paz e da criação de culturas de paz.

A Paz é nossa verdadeira natureza. Somos seres originados pela emoção, e a emoção originária e dominante em nós, seres humanos é – ou deveria ser – o amor. O amor não é um sentimento romântico e interiormente individual. Ele é sempre relacional, interativo, pois é um constante sair de mim em direção ao meu Outro.

Podemos pensar e acreditar que a emoção que torna a Paz inevitável e não-reversível, é o amor. Pois o amor – a emoção da experiência e da vocação original do ser humano – é um movimento gratuito e generoso em direção ao Outro. Ele se realiza como um encontro com o Outro em que esse Outro, a começar pelo Outro-de-mim mesmo, vale e significa algo para mim como um ser-em-si-mesmo. Como um puro ser-em-si colocado diante-de-mim. Quem quer que ele seja, o Outro-diante-de-mim vale pelo seu só existir por um momento, ou por uma vida, em mim, através de mim, comigo e em relação comigo. E é ele que me realiza como um ser-para-o-outro. Na mesma medida em que eu torno recíproco o sentimento que nos une e as ações derivadas desta amorosa reciprocidade.

A violência exercida por aqueles que não aprenderam a viver a experiência humana da Paz, ou que perderam o sentido e o sentimento da Paz em suas vidas, tende a ser um desvio de uma vocação humana inata, não aprendida ou perdida. Ela é algo que não apenas falta em nós, mas algo que nos desvia de ser quem devemos ser. É uma carência de algo aprendível, incorporável à lógica dos sentidos e dos significados com que uma pessoa orienta a sua vida. E é também uma experiência reincorporada às emoções essenciais de uma pessoa em qualquer momento de sua vida. Nunca é tarde para se aprender qualquer coisa de útil. Menos ainda, nunca é tarde para se aprender algo que tenha a ver com as vivências mais essenciais, mais fundadoras, mais importantes na vida de uma pessoa e nas interações entre seres humanos.

Não é preciso apenas aprender este ou aquele valor, esta ou aquela vocação de paz ou de amor, de harmonia, de gratuidade. É preciso aprender a saber ir saindo dos circuitos dos bens e da esfera do poder, em direção ao círculo do dom e da partilha, da troca generosa entre pessoas tornadas iguais em suas diferenças. Isto não é apenas possível, embora pareça remar contra a corrente da “tendência geral de todas as coisas”. Isto é o próprio horizonte mais próximo de uma verdadeira vocação humana. Neste sentido é urgente desnaturalizarmos o que parece só poder “ser assim” porque é da natureza do ser humano”.

A paz é humana. É o que há de mais humano em nós. Ela é dramática e é, finalmente, a grande aventura que cada uma de nós pode viver e conviver. Só há guerra quando há medo. Só há violência quando há temor. É preciso uma enorme coragem para criar e sustentar a Paz: a daquele que superou o mal, o temor, o medo, o pavor. Só aí pode haver Paz. Só então há a Paz. Quem não teme, não odeia. Quem não odeia pode viver a experiência da Paz-interior, e da Paz-social. A violência, a guerra, o militarismo não estão associados ao domínio do forte, ou ao predomínio da coragem. São, ao contrário, associados ao medo. É porque eu tenho medo, é porque eu temo o meu outro que eu me armo e antecipo contra ele a minha guerra. Aprender a não temer, eis o começo da trilha da paz a ser ensinada às crianças e aos jovens. Pois só quem não teme o outro pode amá-lo.

Só há amor quando não há temor algum do meu outro. Aprender a não temer. Aprender a não se sentir humilhado. Aprender a não se colocar como inferior. Aprender a não se ver a si mesmo pelos olhos de utilidade de um outro, para um outro. A não se sentir separado da vida e nem digno dela. O ato de coragem mais absoluto é o de abandonar a violência, filha do medo, em nome da Paz, a irmã da coragem-de-ser.

O rosto da paz não é apenas político. Ele é também ético. O rosto da paz não é somente ético. Ele é, antes, estético. Seu poder é o bem, e sua bondade é a beleza. O que a paz gera não é só o bem entre as pessoas, é a possibilidade de fruir a beleza entre elas, e entre elas e o mistério da vida. Pois o próprio sumo bem da vida humana é uma vida realizada com harmonia, como a dança dos gestos daqueles que se irmanam e se solidarizam. O que se cria através do esforço por construir um mundo-de- Paz não é um resultado partidário ou político, e nem uma teoria pedagogia pacifista. É a própria vida humana tornada um gesto de beleza. Assim, a criação da paz em sua dimensão própria, é uma “obra de artista”.

Não aspiramos o mundo de Justiça e de Paz, de inclusão e de liberdade para sermos ajustadamente “bons”, e para sermos ética e politicamente “corretos”. Buscamos construir um mundo social de primado da Paz para fazer possível o levar todas as pessoas de todos os povos aos limites da experiência da beleza e da felicidade.

A maravilhosa arquitetura orgânica de nossa interioridade é regida por um princípio de busca contínua e crescente de re-equilibrações interiores, assim como de nossas interações vividas como o-mundo-fora-de-nós. Pois desde o seio da mãe em que mamamos, será sempre em busca de “algo em outra pessoa” que estaremos vivendo e interagindo, para aprendermos quem somos e para sabermos ser algo mais e melhor do que temos sido até agora. Estranho que pessoas que passem anos “malhando” em nome de um aprimoramento da beleza e da saúde de seus corpos, sejam resistentes a uma outra qualidade de “malhação interior”, em direção a um “ser mais” de dentro para fora e de-mim-mesmo para com os-meus-outros. Afinal nós, os seres humanos, não estamos aqui na Terra para nos limitarmos ser… “sadios e sarados!”

O encontro entre seres humanos está geneticamente fundado em nós, sobre uma vocação orgânica, biológica e natural, destinada à conexão, à comunicação, e à cooperação. No movimento mais essencial e primário é o impulso a nos estarmos buscando sem cessar. A nos encontrarmos-a-nós-mesmas através de diferentes formas de encontros-com-os-outros E através de trocas de afetos e de buscas de sentidos para a vida, assim como de significações para o destino e a história nossa, de nossos outros e de nosso mundo.

O primado da confiança no Outro é tão essencial, que mesmo no mundo das relações de mercado, a própria relação de competência competição está fundada na confiança em si mesmo, assim como na confiança no Outro, mesmo quando ele pode ser um rival. Ainda que exista aí, taticamente, um pressuposto de desconfiança generalizada, em termos mais amplos e mais estratégicos subsiste um curioso cenário partilhado de confiança mútua. Ainda que seja em termos de… “confiar desconfiando”.

Assim, mesmo no mundo regido pelo primado do capitalismo em sua versão neoliberal, parece haver um preceito básico e lastimavelmente infra-humano: “Eu não confio nos outros porque em princípio não confio eticamente em mim mesmo. E não confio nele e em mim mesmo porque nós todos agimos como sujeitos regidos por uma lógica de jogo. Um jogo em cujas regras a competência profissional está casada com uma moral regida por uma competição fundada na conquista, no domínio, no engodo e na barganha”.

E a contrapartida desta confiança desconfiada nos outros parece poder ser resumida assim: “Eu preciso confiar em que os meus competidores são confiáveis”. Preciso confiar, mesmo vivendo e trabalhado em num “mundo miserável”, em que todos com quem convivo e negocio são “mundo miserável”, em que todos com quem convivo e negocio são provisórios aliados estratégicos e, ao mesmo tempo, inevitáveis provisórios aliados estratégicos e, ao mesmo tempo, inevitáveis competidores táticos. Assim, eu preciso crer que competidores táticos. Assim, eu preciso crer que eles não ultrapassarão princípios de relacionamentos comerciais que tornam possível a lógica da própria competição, para que o comércio não se transforme em espécie qualquer de “guerra aberta”.

Assim, a pessoa tornada consciente é aquela que torna ativamente consistente a experiência interativa da partilha da confiança mútua. E porque confia cada vez mais em si mesma, nos seus outros e no sentido e no valor do que realizam juntas, ela, passo a passo devota os tempos de sua vida ao trabalho coletivo de construção de vidas genuinamente humanas, na mesma medida em que se envolve com projetos de justiça social e de construção de um mundo de vida cotidiana e de história humana em que todas as pessoas possam enfim viver uma vida de fato verdadeira.

A nossa vocação ao longo da trajetória evolutiva humana está em chegarmos a um tal ponto de crescendo ascendente de consciência, e a uma tal inter-relação amorosa entre todos os seres da Terra, que uma experiência do enlace de toda a humanidade em uma esfera de recriação do próprio Ser-da-Vida na Terra, conduza a que tudo e todos se vejam e se reencontrem enfim irmanados. Irmanados não apenas em uma nova e esperançosa dimensão de encontro de/entre consciências, mas também no surgimento de uma geração humana social, simbólica e afetivamente imersa por completo na vivência e na partilha do amor.

E este chegar a tal ponto somente pode ser conduzido e realizado através de um crescendo socializador e ascendente do amor. Por meio de uma emoção fundada na acolhida plena do Outro, não como um apenas ponto de chegada, ou um distante horizonte a ser atingido um dia por uma humanidade supraconsciente, mas como um ponto de partida. Como um arranque de agora mesmo, em direção ao futuro.

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