Pessoa

O ser humano é uma obra aberta. Ele pode e deve estar sempre se recriando-a-si-mesmo. Ele deve estar sempre se recriando. E ele, sempre que pode, está sempre se recriando.

O ser humano é o autor, ou é um coautor essencial da obra de si mesmo.

O ser humano é sempre inacabado e aperfeiçoável, ele depende de si mesmo para tornar-se sempre mais imprevisivelmente aperfeiçoado.

O homem não se reduz a fórmulas, não se reduz a definições acabadas, não se encerra na proposta de uma maneira única e formal de ser.

O ser humano é criador de sentidos e significados para um pensamento e para uma existência transdisciplinar.

O ser humano é uma vocação ao diálogo. Pois é no encontro, é na comunicação, é na interação solidária com ele mesmo com os seus outros – outros seres humanos e outros seres da Vida – é no diálogo com o seu Mundo e com os seus mistérios, que ele se realiza a si mesmo, realizando-se com o Outro e no Outro.

Centrar-se no presente e viver plenamente o presente de cada instante. O presente é o tempo em que eu sou, em que nós somos. O presente é o momento da vivência do amor e da troca. Ele não é algo que se possua, pois não se possui um presente e não se espera um futuro: somos e vivemos cada presente e criamos a cada momento o futuro que nos espera. Tem é Vida, não é dinheiro.

Viver a alegria. A alegria é o sentimento de quem sai-de-si e se lança na trilha do Outro pelo caminho da partilha do Amor. Do mesmo modo como o tempo presente, o Amor é algo que não se possui, que não se dá e que não se guarda. O Amor é algo que se partilha: o Amor pelo Outro é a partilha da Vida na relação livre e desinteressada do núcleo fundador da própria Vida: o entre-nós.

Livres do desejo do poder, do controle e do enriquecimento material, no plano de criação do Eu e do Nós como seres-humanos-interativos, podemos nos abrir a voos do devaneio, do sonho e do imaginário. Que eles não nos sejam fugas do real, mas o alargamento dele através do como podemos estende-lo em todas as suas dimensões.

Toda a palavra e toda a ação que transformam pessoas, transformam suas vidas e transformam o mundo em que elas vivem e se encontram, é uma forma de poesia. Há um poeta vivo ou adormecido dentro de cada um de nós. Que ele desperte!

A inveja, o rancor, o ódio, o desamor não são a contraface, como os componentes do “lado de sombra”, daquilo cujo “lado de luz” seria o amor e a experiência interativa do amor. Inveja, rancor, desamor, ódio e seus derivados, são o que sinto quando vivencio o meu Outro como um objeto. Como um alguém sobre quem eu sobreponho o meu desejo sempre insatisfeito de proveito utilitário, de posse, ou de exercício do poder.

Em seu equilíbrio pleno, a pessoa humana é amor. Em sua busca de equilíbrio a pessoa é uma permanente, instável, progressiva e nunca realizada construção pessoal da experiência do amor, tal como ele pode ser vivido e posto em interação por uma pessoa.

Tudo é o diálogo e tudo o que nega ou distorce o diálogo é uma forma de negação da Vida e do Humano. Todo o nosso aprendizado solidário provém de momentos de diálogo e serve ao aprofundamento de nossa capacidade de viver diálogos e conviver entre diálogos. Toda relação gratuita é um encontro em um diálogo.

Toda a relação entre pessoas, quando ela envolve de um lado uma pessoa e, do outro, não uma pedra ou um animal, mas uma outra pessoa, enfrenta o dilema de transformar um “encontro” em uma “experiência”’, ao invés de transformar um “encontro” em uma interativa e igualitária “relação”. Entre duas pessoas genuínas que não se querem encontrar como personagens de cenas escritas por outros para eles representarem um diante do outro, o único encontro realmente humano em sua plenitude é a relação livre e dialógica. É a interação entre dois seres em que o outro não possui utilidade alguma para mim, na mesma medida em que em nada sou útil ou proveitoso para ele, a não ser na condição de sermos, em nós mesmos e um para o outro, apenas a pessoa que somos.

Na relação original da emoção do amor, não há nem mesmo o desejo de conviver com, de ter ou de intencionar o Outro com quem eu partilho um breve ou longo momento de nossas vidas, como ser útil ou proveitoso para mim. Uma pessoa humana nunca é um ser utilizável. E a utilidade ou o proveito não deveriam ser a razão do encontro entre pessoas numa relação amorosa, embora possa ser uma de suas consequências.

Eu só amo aquilo e só amo aquele cuja presença eu aspiro sem proveitos utilitários algum. Se o outro é a pura e livre pessoa-de-si-mesmo em meu pensamento e em meu afeto, não há necessidade alguma do desejo da posse e do exercício de algum poder sobre ele. A relação interativa e dialógica que vai até bem mais longe do que apenas uma questão de respeito, ou de partilha de “direitos humanos”. Pois ela está fundada no amor-do-Outro, e é vivida entre seres que se amam porque se colocam, um para o outro, como puros sujeitos.

O oposto da relação em uma situação-de-encontro entre pessoas, não é propriamente o domínio ou a coação, mas é a experiência utilitária. Pois eu deixo de me relacionar livre e intersubjetivamente com um outro de algum modo colocado diante de mim, quando o experimento, quando o experiencio. Quando eu o testo – e a mim mesmo – para saber, segundo os meus interesses, qual o teor de utilidade dele para comigo, logo, para mim, em meu proveito. Mesmo que de alguma maneira este proveito próprio seja estendido também a ele. Não é apenas porque o domino e por um momento defino o seu destino que eu o transformo em um objeto-para-mim, ao invés de conviver com ele como um sujeito-sem-si-mesmo, em uma interação intersubjetiva, uma relação entre dois sujeitos livres um para o outro. Eu lido com um sujeito tornado para mim um meu-objeto quando de algum modo estabeleço como fundamento de nosso encontro uma utilidade dele e nele, para mim.

Sendo a imagem mais direta e poderosa de sua presença, o rosto de um Outro-diante-de-Mim não me obriga e nem me constrange; mas me aponta a acolhida e me conduz a Ele. Eis toda a realidade: a presença do Outro e o espelho de sua face diante de mim. E Eu vejo por inteiro o rosto do Outro. E me encontro com a presença do Outro através de seu rosto, quando Eu não vejo nele o meu próprio narciso-rosto no espelho do rosto do Outro. Quando, ao contrário, vejo por inteiro o Outro no seu rosto quando me apago de Mim, e o vejo no espelho de meu rosto.

É Ele-diante-de-Mim quem se oferta e se dá a Mim: sua face, seus olhos, a arquitetura única e irrepetível de sua imagem. A imagem do rosto do Outro é o seu ser-único-diante-de-mim, ao mesmo tempo aquém e além da simples e abstrata ideia-de-um-outro-qualquer.

Diante-de-Mim o Outro-ao-meu-lado não é nunca um “outro qualquer”. Não é um mero “vizinho de banco”; não é um “desconhecido” apenas porque Eu ainda não o conheço. Ele não é, sobretudo, um “ninguém”, como se, estando ao meu lado Eu não visse ali, diante de mim, uma “Pessoa”.

Se algo dele tem a ver comigo em nossa escola, em nosso lugar de trabalho, na rua onde Eu moro, no meu bairro, em minha cidade, no mundo que habitamos juntos, o Outro-ao-meu-lado não é um alheio. Ele não é um rival, não é um concorrente, um competidor. Pode tornar-se assim, como um ator social, tal como Eu mesmo também posso. Mas como uma Pessoa em sua humanidade, Ele é um Ser-para-Mim. Um alguém cuja simples presença o torna tão ou mais sagrado do que “a Pátria que eu amo”.

Ele não é meu inimigo, mesmo que por um momento Ele se coloque assim frente a Mim. Pois mesmo podendo estar socialmente contra Mim, Ele é um alguém existencialmente… ao-meu-lado. Somos seres humanos, em comum, como comunidade de destino. Habitamos um mesmo lar, o Planeta Terra. Nos dois pontos extremos vivemos um mesmo destino: nascemos em um dia… e em um outro iremos morrer.

O Outro-ao-meu-lado é uma Pessoa como Eu sou. Uma Pessoa que por um breve momento, ou por um longo tempo de vida escolheu estar ali onde Ele está: ao-meu-lado, aqui-e-agora. O Outro-ao-meu-lado é um rosto. Ele é o corpo de seu rosto. Ele é um espírito e é a consciência de um Ser. Mesmo que Eu nada saiba do que Ele sabe, sei que Ele é um universo pessoal de sentimentos, de saberes, de sentidos, de sensações, de significados e de sociabilidades.
Tendemos a pensar o Outro como um problema (aliás, estamos cada vez mais condicionados a “pensar tudo como problema”). Ora, qualquer que seja a minha disposição para com Ele, e qualquer que venha a ser a nossa interação, o simples fato de que nos defrontemos (estejamos Um frente ao Outro), ou nos confrontemos (estejamos na linha de fronteira entre o “com” e o “contra”) a pessoa física do Outro-diante-de-Mim gera em Mim (e Eu nele) a presença, ou mesmo a ameaça de um problema. Algo que, com Ele e através dele, “está aí” e me toca, ou nos toca solucionar.
Mas esta será a qualidade da relação, se de algum modo o Outro-diante-de-Mim houver sido objetivado por mim. Somente há um problema quando há algo ou alguém que “está aí”, e precisa ser enfrentado, decifrado, resolvido, mesmo que Eu pretenda agir em nome de seu inteiro bem. Quando tenho diante de mim uma outra Pessoa em sua absoluta pessoalidade não-objetivável, o que seria um problema quando eu a objetivo, torna-se um mútuo mistério em Nós, entre-Nós e através de Nós.

Eis como e porque Eu não posso objetivamente decifrar o Outro, embora possa reconhecê-lo e compreendê-lo, sem poder reduzi-lo a “o que eu penso a respeito dele”. Como um ator social contemporâneo a Mim, em tempo e espaço, Ele até pode ser “objeto de meu estudo”. Mas como uma Pessoa, como um alguém, um senhor-de-um-rosto-diante-de-Mim, o Outro habita a região indecifrável do mistério para muito além de uma qualquer decifração própria ao que é um problema.

O Outro-diante-de-Mim torna-me de imediato responsável, em alguma medida, por Ele. Não vivo com Ele um encontro apenas quando o acolho sem reservas, e penso amá-lo. Nós nos encontramos quando reconhecemos no rosto de um Outro a indicação daquele por quem somos também responsáveis, no instante de um momento, ou através de uma vida inteira. Afinal a pessoa do Outro, seu corpo, seu rosto, não são aquilo que nós encontramos pelo nosso caminho. O meu Outro é aquele em cujo caminho Eu me coloco para, através dele, encontrar-me a Mim-mesmo.

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