Vida
Nós não somos intrusos ou apenas uma fração da natureza invasora e rebelde à vida. Somos, todas e todos nós, e cada uma e cada um de nós, a própria múltipla e infinita experiência da natureza realizada como uma forma especial de vida: a vida humana. A experiência da vida realizada na espécie humana. Naquilo a que nos acostumamos a chamar de: humanidade.
Tal como outros seres vivos com quem compartimos a mesma nave e casa, o planeta Terra, fomos criados com as mesmas partículas ínfimas. Somos gerados das mesmas combinações de matéria e com as mesmas energias que movem a Vida e os astros do Universo. Algo do que há nas estrelas pulsa também em nós. Algo que, como o vento, sustenta o voo dos pássaros, em uma outra dimensão da existência impulsiona o voo de nossas ideias, de nossos pensamentos.
Podemos considerar “Vida” – a Vida presente em todos os seres com quem compartimos a Terra, assim como a Vida Humana que partilhamos aqui na Terra – como um valor essencial, irredutível e fundador de todas as relações e interações entre todos os Seres da Vida, entre nós e eles, e entre nós, os seres humanos.
Podemos sentir, pensar e vivenciar uma vida de harmoniosa e consciente conciliação com a Natureza e com toda a vida da/na Terra, através da criação e do fortalecimento de uma outra ética, de uma outra poética e de uma outra política de interações entre as pessoas e os Povos do Mundo e entre elas e a Vida.
Podemos aprender pouco-a-pouco a experimentar os Seres Vivos do Mundo em que vivemos, não como algo inferior a nós, e que existe apenas a serviço dos seres humanos, como se fôssemos os “donos do mundo”, mas como nossos “companheiros de viagem” nesta grande casa-barca, o Planeta Terra, em que vivemos juntas e junto. E desde onde viajamos entrelaçados através da Vida.
Podemos começar a lidar com as plantas do jardim, com as árvores da rua, com os pássaros da manhã e com a múltipla Vida que por toda a parte nos cerca, nos envolve, e está presente em cada momento entre os vários lugares onde vivemos e convivemos entre nós e com eles, como um repertório gratuito de formas da Vida que merecem de nós um outro olhar, um outro tratamento, um outro afeto, um outro destino.
Antes de nos sentirmos credores de direitos a uma vida feliz e a uma crescente e mensurável qualidade de vida, devemos nos sentirmos solidariamente corresponsáveis pelo dever individual e partilhado de criarmos mundos sociais de uma vida de qualidade. Todo o projeto de desenvolvimento social ou de melhora e incremento das condições da vida que, em nome de alguns poucos, deixa à margem um número crescente de “outros”, desqualifica a vida, o humano, e a sociedade.
Somos, os seres humanos, a mais estranha e milagrosa experiência de existência da Vida. Nós não nascemos prontos, sábios e acabados do sopro de um Deus e do barro de suas mãos. Se um Deus nos fez, ele não apenas não acabou de nos fazer como deixou, em e entre as nossas mãos, a tarefa de seguirmos nos fazendo e construindo o nosso Mundo. Se é um fato verdadeiro ou simbólico que Ele “descansou no sétimo dia”, haverá de ser porque terá reservado a nós a tarefa de seguirmos aqui na Terra a sua obra. Somos nós, os Seres Humanos, os “artesãos do oitavo dia”.
Ao saltarmos da cadeia do sermos “seres racionais”, por oposição a todos os outros seres vivos, em direção ao território comum da mesma Vida que com eles compartimos aqui na Terra, nós não nos rebaixamos” a uma “animalidade”, ou a uma “vegetalidade”. Ao contrário, nós nos alçamos até a esfera daquilo que é bem mais a nossa assinatura fraterna, do que uma pretensa “racionalidade” exclusiva e excludente. Nós nos libertamos do que nos isola em uma esfera de existência inferior, para nos recolocarmos como seres daquilo que é mais verdadeiro e “alargado” em nós: a Vida que partilhamos.
Podemos, na contracorrente dos imaginários de destruição futura, sentir e pensar que o “Paraíso” começa aqui e agora, e haverá de ser, como tudo em nossas vidas, algo construído através de ações de e para toda a Humanidade. Se assim é, ou se assim poderá vir a ser, uma pergunta urgente deveria ser esta: “não seria agora o tempo de resgatarmos as perguntas mais essenciais sobre o sentido do humano, e buscar através delas as respostas a serem colocadas em um diálogo sem fim”. Um pluridiálogo em busca do regate do que podemos acreditar ser o mais desafiadoramente humano em Nós mesmos. Em Nós e um entre-Nós, através de nossas relações e encontros com os nossos Outros?
Tudo o que existe realiza a seu modo alguma dimensão de uma força de saída-de-si-mesmo-em-busca-do-outro. E também de formação contínua de unidades mais complexas, mais autônomas, mais integrativas, mais poéticas (harmoniosas), e mais poiéticas (mais capazes de gerar integrações), porque elas provêm de um mesmo princípio gerador e ordenador do sentido de presença em um Universo existente em tudo o que há.
Apenas na totalidade de eu somos e em que vivemos, é gerada em nós a dimensão e o sentido do existir de tudo o que há, desde uma pequenina e efêmera borboleta até imensidão da montanha onde por um momento ela pousa. Porque assim como há uma origem comum e misteriosamente conectiva unindo desde sempre tudo o que existe, assim também podemos antever um destino comum, uma finalidade, uma razão-de-ser e um esperançoso horizonte de plenitude comum.
Nas formas mais complexas e mais diferenciadas entre os seres viventes, realizada nos animais que nos são mais próximos na Árvore da Vida, há um crescendo evidente de algo que se aproxima muito dos fundamentos da maneira humana de ser: o desejo da presença do outro; a dependência de interações afetuosas e significativas; a confiança mútua; a partilha em atividades de interesse comum, enfim, a experiência da reciprocidade. E ela deveria estender-se do “nosso mundo humano”, ao pleno “mundo da vida”.
Ora, assim também existe desde longo tempo um longo debate devotado a esclarecer se a qualidade dos afetos e dos fundamentos dos enlaces entre indivíduos, e entre cada indivíduo e o grupo social é de uma mesma espécie genérica da Vida, ou se existem alguns sentimentos e emoções que, tal como acontece com o conhecimento e a consciência, somente são possuídos e vivenciados pelos seres humanos.
Somos parte e partilha da vida que há e que flui, una e múltipla, perene e instantânea, eterna e instável, criadora e destruidora em tudo o que é vivo e comparte a vida conosco no planeta Terra. E é a vida, em seu nome e no nosso também, que devemos incorporar aos critérios de uma vida de qualidade. Partamos então da ideia e da imagem de que, tomada no singular, a qualidade de minha vida é um momento de minha partilha na construção da qualidade plural da própria vida na Terra.
Assim como a Terra, nossa Mãe Comum, é um ser vivo, um organismo múltiplo, complexo e criador de si mesmo, assim também posso crer que a cada instante de minha Vida Eu estou me criando e, de novo, me recriando. Não partes soltas de meu corpo, sistemas isolados de mim mesmo que, fora do alcance da pessoa que Eu sou e de onde Eu venho, estão trabalhando para criar novas células para regenerar a Vida de meu corpo vivo. Sou Eu-mesmo, todo e inteiro no todo-de-mim-mesmo, em comunhão com as ilimitadas dimensões do Todo da Vida da Terra, e das energias do Universo que se encarrega de recriar em mim a matéria e a energia de mim-mesmo.
Dentro deles e nos muitos pontos de intercomunicação entre eles, vivo tudo o que vivo. E sendo tudo o que sinto, imagino tudo o que imagino e penso tudo o que penso. Posso mesmo concebê-los, em minha mente, em meu coração, como um Todo só, de que sou uma pequena fração, de que sou uma efêmera parte e partilha. Mas também uma forma de ser que sendo única no interior de seu próprio ser de existência, e também no modo como participa do que existe nos vários planos de seus mundos de Vida e de Pensamento, cria o seu modo próprio de ver e pensar.
O primeiro critério de qualidade-de-vida deveria estar contido no significado que atribuímos, e ao sentimento com que vivemos a experiência de sermos uma fagulha do milagre da própria vida. E ele deságua na consciência de que o nosso primeiro ato de busca de uma vida-de-qualidade, é um gesto de compreensão do como e do quanto somos corresponsáveis pelo equilíbrio sustentável das condições planetárias da qualidade da vida.
Com o aprender de uma vida consciente e solidária, podemos aos poucos nos libertar da imagem do ser humano como apenas um servo do trabalho do primado do capital, e seres sedentos de bens do mercado. “Pode mais quem sabe mais”. Esta tem sido uma das expressões mais desalmadas e desumanas e, no entanto, mais corriqueiras destes nossos tempos. Ela e a sua outra má irmã: “o seu sucesso depende do seu saber”. Elas parecem ser instrumentalmente verdadeiras. Mas essas duas frases e tantas outras, semelhantes a elas, revelam apenas o lado mais utilitário e individualista daquilo que é, assim como o amor, a verdadeira vocação da vida humana: a perene invenção do saber. A descoberta do conhecimento que se constrói a cada instante. O viver o aprendizado, sempre efêmero, sempre infindo, que se pode partilhar a cada momento de nossa vida individual ou comunitária, em nome e a favor de tudo o que é vivo e conosco comparte o mistério da vida.
Ousemos recriar a inteireza do valor-pessoa para além de qualquer sentido de poder e de função utilitária e hierárquica. Sabermos ultrapassar todo o atributo de bem e de virtude que possa estar fundado sobre valores de posse e de poder. Tudo o que substitua a arte do conviver na mesma procura solidária do amor e da paz por qualquer modelo de estratégia sedutora de conquista do outro. Dessa conquista perversa que deságua sempre na obsessão individualista e utilitária de “sucesso na vida”. Pois a construção de vidas-de-qualidade nos desafia a recolocar o sentido da virtude no que cada pessoa é em si-mesma, e naquilo que ela vem-a-ser através e no interior das redes de vivências generosas e gratuitas do bem do dom, que cada uma de nós pode e deve viver para criar-se como um ser amorosamente conectivo de encontros e de diálogos.
Como um Ser-da-Vida e unido a ela por todos os laços e ao longo de toda a minha existência, a primeira qualidade de minha vida está na árvore que eu semeio, na planta de que eu cuido, nas águas que não poluo e purifico, na medida generosa e equilibrada dos gestos e dos sentidos e sentimentos com que realizo a cada manhã o meu trabalho cotidiano. Está no carinho do trato e na parcimônia simples e amorosa com que me volto aos bens da Terra. Com que me volto a eles, não para me apropriar deles sem medida, de uma maneira avara e interesseira, mas para conviver através destes bens da vida com o próprio dom da vida.
Assim, o primeiro critério de uma qualidade-de-vida (o que eu possuo e é meu como fruto de meu trabalho) em direção a uma vida-de-qualidade (o que eu sou através do que com os meus outros eu crio), está na forma como participamos e nos sentimos participando do mistério de toda a vida: dentro de nós, entre-nós e à nossa volta.
Podemos deslocar tudo da competição para a cooperação, em todos os planos da vida. Podemos deslocar o sentido da vida do ter e acumular, para o ser e o partilhar coisas, serviços, vidas e destinos. Podemos retirar da economia de mercado a nossa procura de soluções, em direção a uma socioeconomia solidária. Não precisamos de tanto; não precisamos consumir tanto para viver; não precisamos aspirar tantas coisas para sermos felizes. Precisamos de olhos e mãos de ternura e de gestos verdadeiros de amor.