Em 2011, o Campus V da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) foi transferido da Rua Alcides Carneiro, localizado no bairro do Tambiá, para a Escola Estadual de Ensino Médio (EEEM) Escritor José Lins do Rêgo, no bairro do Cristo Redentor, situada na Rua Horácio Trajano, s/n, na cidade de João Pessoa, estado da Paraíba. Tal fato deu vazão, inicialmente, a uma crescente preocupação com a segurança dos alunos, professores e demais funcionários. Esta preocupação adveio do fato de que o Cristo Redentor ser o segundo bairro mais populoso da capital, de acordo com o Censo de 2010, e que apresenta altos índices de violência, marcado pela criminalidade, com vítimas jovens, em sua maioria (Lima, 2012).

Neste contexto, surgiu a ideia de mobilizar pessoas para agir efetivamente contra a problemática da violência, partindo do pressuposto que a insegurança é subjetivamente percebida, mas que necessita de um aprofundamento da análise para não se tomar como verdade preconcepções que podem não ter base na realidade. A busca era por fugir da vitimização e da passividade, pelo levantamento das reais inseguranças, ao mesmo tempo em que se realizaram diversas ações com o intuito emancipador, fugindo do assistencialismo.

Além disso, a comunidade universitária, de modo geral, goza de educação de alto nível de forma gratuita e de qualidade, e uma das formas de se retribuir o investimento social é a mobilização dos estudantes para que tenham real preocupação social e atuação efetiva, com orientação dos professores, para torná-los agentes transformadores da realidade onde se encontram. Ações que estimulem a proatividade e a criação de redes de conectividade de auxílio intelectual, técnico e estrutural entre a universidade, comunidade local e diversos órgãos regionais (governo, ONG’s, empresas, dentre outros) são algumas das características principais que este projeto busca fomentar desde sua criação.

O Projeto Universidade em Ação (PUA) parte do pressuposto de que a emancipação deve ser buscada na relação interna entre alunos e professores componentes do projeto, de forma que os alunos sejam propositores e atores das modificações e sugestões de ação e ressignificação do cotidiano escolar vivenciado (em conjunto com os professores). Um dos fundamentos do projeto é ir além das fronteiras teóricas obter conhecimento através de atividades práticas. Tal característica é basilar para o Estudos para a Paz, já que rompe com as imposições tradicionais das Relações Internacionais e constrói algo, como aponta Pureza e Cravo (2005), socialmente produtivo, ou seja, que realmente produz reflexos na vida social, econômica, política e cultural nas sociedades, unindo teoria e prática em único seguimento em busca de mudanças.

Assim, o PUA busca soluções criativas que só encontram substância quando se vivencia as dificuldades da implementação do projeto de acordo com a realidade local, no intercâmbio de ideias e de alternativas de solução com os profissionais e alunos da escola, bem como com a comunidade adjacente, fugindo de imposições e buscando parcerias, sem hierarquias. Não há como ensinar emancipação sem ser emancipado, e agir da mesma forma.
Partindo disto, o PUA surgiu em 2011 através de propositura do prof. Dr. Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann, vinculado ao departamento de Relações Internacionais da UEPB, com o nome de UNIVERSIDADE NO CRISTO/RANGEL: Educação como geradora de segurança humana (Projeto Universidade em Ação – PUA), consecutivamente aprovado nos editais PROBEX – UEPB 2011/2012, 2012/2013, 2013/2014, 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018 que, adaptando-se às atividades que tem executado, e pretendendo dar continuidade, renomeia-se no edital 2018/2019, como Projeto Universidade em Ação (PUA) no Cristo e no Rangel: construção de paz utilizando o lúdico, o diálogo e as artes.

Com tal direcionamento, o PUA almeja enfatizar a construção de uma cultura de paz, com ênfase nas iniciativas que utilizam as artes como ferramentas lúdicas, criativas e eficientes de transformação da realidade social (Lederach, 2005; Cohen, 2015) e que, através de seu emprego estratégico (Shank e Schirch, 2008), conseguem reconfigurar relações de ódio entre os atores envolvidos em conflitos, em vínculos de confiança, substituindo comportamentos agressivos por comportamentos não violentos (Webel e Galtung, 2007).

Diante disso, o presente artigo discute as ações extensionistas do PUA e suas práticas de construção da paz no ambiente escolar, notadamente, nas escolas municipais Santa Ângela, Agostinho Fonseca e Santa Emília de Rodat, localizadas em João Pessoa. Inicialmente, será discutido o contexto do local de implementação do projeto e o potencial alcance das ferramentas artísticas e dialógicas para a construção da paz e transformação das violências percebidas. Seguidamente, serão apresentadas as práticas desenvolvidas pelo projeto ao longo dos quase 8 (oito anos) de sua existência.

CONTEXTUALIZANDO O LOCAL E TEORIZANDO SOBRE A PRÁTICA ARTÍSTICA E DIALÓGICA PARA A PAZ

Partindo inicialmente da visão de que a comunidade onde o projeto está inserido é conhecida por suas dificuldades socioeconômicas, tais como índice de abandono escolar, alcoolismo infantil, tráfico de drogas e marginalidade, reconhece-se um cenário marcado por alto índice de violência estrutural, já que a comunidade não tem tido condições de ter um desenvolvimento individual e societal no amplo espectro da vida humana (Galtung, 1969).

Tal ênfase atribuída ao local de desenvolvimento do projeto é compatível com a Virada Local (local turn) na literatura de Estudos para a Paz e nos Estudos Críticos de Segurança, em que, no primeiro, o “local” está inserido como agente participante dos processos de construção de paz, e, no segundo, confere-se um destaque maior aos indivíduos e à geração de sua própria segurança (Schierenbeck, 2015; Richmond, 2007; Booth, 2007).

Pensar um projeto de extensão requer, naturalmente, abordar por vieses empíricos a realidade nele tratada. Daí a necessidade em se privilegiar os estudos etnográficos tão enfatizados na Virada Local, porque permitem ouvir as vozes ‘subalternas’, costumeiramente silenciadas, e compreender a lógica cotidiana dessas comunidades, suas subjetividades, seus conflitos, seus discursos e suas temporalidades, ampliando suas narrativas, as quais se mostrarão legitimamente situadas dentro de um espectro distinto daqueles que as têm invisibilizado ou as conhecidas apenas teoricamente.

Dessa forma, trabalhar o PUA segundo o panorama da Virada Local é uma escolha metodológica, que força os extensionistas a compreenderem ao menos dois desafios. O primeiro é o seu papel de pesquisador prático, processual e relacional, que se distancia daquilo que Didier Bigo (2013, p.183) caracteriza por “pesquisador de poltrona de Relações Internacionais”, isto é, aquele que produz abstrações sobre as práticas, as lógicas e os atores sobre os quais investiga, não os conhecendo realmente, uma vez que prefere ou se limita a olhar “para o mundo a partir de sua tela [de computador] como [se fosse] uma criatura divina capaz de ver simultaneamente todas as facetas do mundo” (ibidem). Tal postura não deve ser admitida a um pesquisador extensionista, nem a um construtor da paz, focado no âmbito da localidade.

O segundo é o efeito que a sua condição de practitioner da construção da paz produz em uma localidade. Isso pode ser percebido por meio da interação deste com os indivíduos locais, quando ambos se dão em interação, seja, por exemplo, na realização de experimentos etnográficos nas comunidades, ou na propositura e execução de intervenção estratégica com finalidades de gerenciamento dos conflitos locais. Em ambos os aspectos, é possível averiguar a construção do entendimento de que a paz carrega em si diferentes subjetividades e dinâmicas de poder que a singularizam.

Nesse sentido, o local surge com uma perspectiva que subverte a lógica tradicional das Relações Internacionais, que tem privilegiado os Estados e as relações interestatais (Buzan e Hansen, 2009). Estes Estados, muitas vezes, são os geradores de (in)segurança e violência para indivíduos e comunidades, quer seja no contexto doméstico ou estrangeiro (Booth, 1991).

Assim, ao compreender os níveis de violências, sendo a direta (manifestada no plano físico, verbal e psicológico) o resultado das violências estruturais e culturais (Galtung, 1969, 1990), emerge a ideia de pensá-las e tratá-las através do desenvolvimento de abordagens que alcancem as raízes dos conflitos e promovam a segurança positiva (Gjorv, 2012), cuja ótica destaca os contextos, os valores e as práticas não violentas como aspectos fundamentais para a consolidação de estruturas sociais seguras e pacíficas, por meio da epistemologia da capacitação.

Frente às ações violentas e às falhas dos mecanismos de segurança estatal em promover a redução significativa dos índices de violência, como a conduta repressiva das políticas estaduais (Soares, 2006), surge a necessidade de pensar em abordagens alternativas de implementação em curto, médio, e longo prazo, possibilitando a ação frontal, preventiva e estrutural, contra tais ações negativas. O desenvolvimento de abordagens alternativas pode ser fundamentado nas literaturas de Segurança Humana, Estudos para a Paz, que incluem a Transformação de Conflitos e a Cultura de Paz (Pelizolli, 2008).

Além disso, uma questão para teóricos e práticos da paz gira em torno da tendência em padronizar os métodos de resolução de conflitos, tratando-os como soluções prontas, sólidas e eficazes, mas que geralmente reprimem a participação das comunidades locais, ou seja, impedem o empoderamento dos indivíduos e restringem suas contribuições para a construção de sua própria lógica de segurança (Lederach, 1995).

Diante disto, Paulo Freire (1991) reconhece que neste cenário existem condições para a emancipação. Esta última é a possibilidade para o processo de transformação social, que antes de efetivar a mudança na coletividade humana deve realizar a mudança no indivíduo, enquanto sujeito histórico. Este processo emancipatório incorpora-se ao de humanização, onde a luta por autonomia e liberdade só se mostra possível quando oprimidos, uma vez imersos nesta busca, se tornam reconstrutores de sua própria humanidade, bem como de seus opressores.

E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos outros. (…) A libertação, por isto, é um parto (…) O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos (Freire 1991, p. 30-35).

Em Freire (1991), então, percebe-se a exigência da relação, do encontro, substanciada profundamente no princípio da dialogicidade, por meio do qual se funda o coletivo. Isso significa que é na interação que o estabelecimento de conexão e a transformação positiva de conflitos se tornam possíveis, sem padronizações ou modelos pré-estabelecidos, mas a partir de proposições consensuadas. Dessa forma, torna-se vital refletir sobre quais estratégias e ferramentas possibilitam o encontro com o Outro.

Nesta perspectiva, a introdução da Cultura de Paz – compreendida em conformidade com o Artigo 1º da Declaração sobre uma Cultura de Paz, da Organização das Nações Unidas (ONU) (1999), como um “conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados: (…) no respeito à vida, no fim da violência e na promoção e prática da não violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação; (…) no compromisso com a solução pacífica dos conflitos”, o qual está, ainda, correlacionado aos quatro pilares do conhecimento estabelecidos no Relatório Delors, quais sejam: Aprender a Conhecer, Aprender a Viver Juntos, Aprender a Fazer e Aprender a Ser – e de práticas preventivas e restaurativas no ambiente escolar buscam apontar para relações e conexões humanas que superem as constantes violências (física, verbal, emocional, cultural e estrutural), que muitas vezes estão presentes nos lares, nas salas de aula, nas relações entre pais e filhos, professores e alunos, e entre os próprios alunos, que reproduzem a violência cultural já arraigada, já que para fazer a criança obedecer, no geral, impõe-se a lei do mais forte, do que fala mais alto.

O objetivo é criar a capacidade de trabalhar na perspectiva da disciplina restaurativa (Amstutz e Mullet, 2012), humanizando as relações e criando possibilidades de diálogo. Assumindo o diálogo e a sensibilidade como ferramentas estruturantes, o processo educativo poderá estabelecer-se em lugar seguro de (re)construção de relacionamentos, no qual seus atores reconhecem limites, responsabilidades e potencialidades, contribuindo para uma convivência saudável, respeitosa e sem violência, não comprometendo, assim, o ensino, a aprendizagem e a construção do sujeito histórico.

Mais especificamente, Marshall Rosenberg (2006) traz a comunicação não violenta como forma possível de diálogo, fugindo do confronto verbal, indo em direção à apresentação de sentimentos e necessidades, abrindo espaço para a comunicação empática. Howard Zehr (2008, 2012), por sua vez, apresenta a Justiça Restaurativa, que posiciona as ações voltadas a solucionar um conflito indo além da punição, ouvindo ator, receptor da agressão, bem como a comunidade, em processo conjunto, estabelecendo formas de reparar e de criar bases para a convivência futura de todos os envolvidos. Luis Alberto Warat (1998) apresenta a lógica da mediação transformadora, que transcende o mediador a uma figura que somente realiza a intermediação entre duas pessoas conflitantes: o objetivo é empoderar as partes, ensinando-as a dialogar pacificamente, e não propor ou impor soluções. Por fim, Kay Pranis (2010, 2011) apresenta os círculos, sejam eles preventivos ou restaurativos, com a proposição de criar conexões entre as pessoas, por meio de histórias pessoais, apresentar valores comuns para, a partir desse ponto, tratar questões relevantes que preocupam determinado grupo. Os círculos reúnem todos os fundamentos anteriores, com a vantagem de criar um ritual comunitário e de fortalecer ainda mais a fala dos envolvidos, empoderando-os ainda mais.

Outro aspecto fundamental é a questão da expressão corporal e artística, que, em Boal (1996, 2009, 2014), busca explicitar o cotidiano e transformá-lo, por meio de práticas teatrais. O teatro (jornal, invisível, fórum) dá lugar à estética do oprimido (2009), que transpõe o teatro, abordando qualquer forma de expressão artística que procure dar condições a grupos marginalizados se expressarem e se emanciparem. A arte cria outras possibilidades de diálogo, metafóricas ou realistas, possibilitando novas formas de agir, entender a si mesmo e ao meio social no qual se é parte, expressar identidades e reconciliar-se, sendo uma das estratégias eficazes de construção de paz (Boon e Plastow, 2004. Rosoux, 2007. Shank e Schirch, 2008. Cohen, Varea e Walker, 2011. Milosevic e Mulekwa, 2011).

A arte da palhaçaria, particularmente, pensada como ferramenta transformadora e de afetação (Deleuze, 2002) nas práticas processuais para a paz e de promoção do encontro com o Outro, carrega uma significação relevante e paradoxal, a qual, ao mesmo tempo em que choca por meio do risível, também cria identificação manifestada no riso. O ridículo do palhaço, que faz ele rir de si mesmo e os outros rirem dele (e com ele), o aproxima de quem o assiste ou de quem com ele interage, porque cria novas lógicas em relação à realidade social conflitante por meio da comicidade, utilizando-se para isso, da transformação cênica, que inverte, denuncia e contesta a norma social. Isso é possível porque o palhaço é um arquétipo social que se constrói na transgressão aos valores socialmente estabelecidos, uma vez que rompe com estéticas e linguagens comuns culturalmente fixadas e assume suas falhas humanas, seus fracassos, particularidades e incompletudes por meio das configurações de confronto que o indivíduo percorre para descobrir o seu clown (Wuo, 2009). Esse processo de surgimento do palhaço individual o humaniza, e é na evidência de sua condição humana que o riso se cria e promove empatia no seu encontro com a plateia.

Juntamente à transgressão, o palhaço é marginal, posto que se situa em lugares que requerem transformação social, e até mesmo olhares de transcendência. De maneira geral, a arte destinada à construção da paz se localiza em espaços marginalizados que expõem os avessos normativos e relacionais coletivos que, em certa medida, requerem práticas que se apresentem restaurativamente dialógicas ao corpo social.

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