O Teatro do Oprimido e os jogos teatrais no bairro Rangel
Acreditando que o conhecimento acadêmico precisa ultrapassar os muros da universidade para realmente exercer o seu papel político e social de promoção do desenvolvimento, foi realizada uma oficina de Teatro do Oprimido e jogos teatrais no CRJ-Rangel. Logo, objetivou-se estimular e observar o potencial da arte como uma estratégia coerente para a promoção da autonomia, coletividade, participação social e transformação de representações políticas dominantes e opressoras. Dessa forma, nesta última seção, será descrito como se deu a construção da oficina, pontuando os momentos relevantes de acordo com a literatura que fundamenta o quadro teórico-analítico.
A oficina foi possível pelo arranjo colaborativo entre o CRJ-Rangel e o projeto de extensão universitária Projeto Universidade em Ação (PUA/PROEX/UEPB), vinculado ao Bacharelado em Relações Internacionais da UEPB. O PUA é um projeto que se volta para o desenvolvimento da segurança humana por meio de práticas de cultura de paz nas comunidades próximas ao Campus V da Universidade, também localizado em João Pessoa. O projeto foi criado em 2011 com a ideia de mobilizar pessoas para lidarem com a questão da insegurança estrutural e para atuarem juntamente com os atores locais, em particular ONGs e escolas públicas dos bairros Cristo Redentor e Rangel, recorrendo ao lúdico, às artes, ao diálogo e às práticas pedagógicas críticas para fomentar a construção de capacidades da população local (professores da rede pública de ensino, líderes comunitários, crianças e adolescentes).
A oficina teatral contou com 10 participantes – 9 deles entre 10 e 12 anos e uma participante de 42 anos, sendo todos moradores do bairro Rangel. Esse é um bairro de baixa renda e que carrega o estereótipo de ser uma zona violenta, devido à presença de facções criminosas. Por isso, a introdução de processos artísticos que estimulem a capacidade dos participantes de perceber o local em que eles vivem e os acontecimentos que permeiam a comunidade pode ser uma relevante estratégia para instigar as suas expressões individuais (sensoriais e corporais), o diálogo coletivo sobre os fatos e as suas capacidades críticas diante das representações hegemônicas que são postas na comunidade.
Antes de dar início à oficina, foi imprescindível um primeiro contato com as crianças do local, para que pudesse ser verificado o nível de acolhimento do público-alvo em relação à iniciativa proposta. Dessa forma, estabeleceu-se um diálogo inicial no formato de roda de conversa e com jogos lúdicos de apresentação grupal entre o PUA e os estudantes do Centro. Ao ser identificado o interesse do grupo, o PUA, em conjunto com a direção do Centro de Referência, estabeleceu o início da oficina para o dia 9 de agosto de 2018 e o término para o mês de novembro do mesmo ano, totalizando três meses de aulas com duração de duas horas e duas vezes por semana (terças e quintas-feiras). Embora se trate de uma proposta do PUA, a oficina só foi realizada a partir do consenso e disponibilidade do grupo comunitário, que demonstrou interesse em participar da iniciativa.
No primeiro momento da oficina, buscamos internalizar o conhecimento do corpo e o tornar o corpo expressivo, que caracterizam a primeira e a segunda etapa base dos jogos de TO. Esse momento foi pensado para gerar o início da integração do grupo visando à expansão dos sentidos e do corpo, mesclando com o uso dos jogos teatrais de Viola Spolin, que são baseados no aquecimento ativo, comunicação não verbal, movimentos físicos e movimentos de expressão e percepção espacial. Esse formato inicial, voltado ao desenvolvimento sensorial, foi estabelecido para conhecer e aproximar os participantes da oficina.
Foi possível observar que os participantes ficaram desfocados quando os jogos eram de percepção espacial e de caminhadas, mas quando eles envolviam objetivos imaginários, como os exercícios A9, A10 e A12 do Fichário de Viola Spolin (2001), eles demonstravam maior concentração. Esses jogos mencionados buscam a consciência corporal, estimulando o desenvolver de movimentos com a finalidade de desmontar o corpo e conhecer os limites corporais. Em determinado momento dessa prática, três estudantes desejaram participar e o objetivo era de imaginar uma bola no espaço físico e brincar com ela; enquanto isso, os demais ficaram como plateia. No processo final de avaliação do jogo, quando sentamos em círculo e conversamos, em conjunto, sobre a prática, a plateia apontou que somente um dos participantes conseguiu tirar a bola da cabeça e colocar no espaço, com movimentos e expressões corporais que se assemelhavam a um jogo com uma bola real. Após a primeira aplicação do exercício e da breve discussão sobre como ele se configurou, os demais participantes se motivaram para participar, ou seja, percebeu-se que a hesitação inicial era resultado de dificuldades com a expressão corporal exigida pelo jogo teatral, um exercício não convencional para o grupo.
Foram realizados jogos de caminhadas com a professora da oficina dando instruções para que os alunos caminhassem alternando os níveis de velocidades enquanto se moviam em um grande círculo, e exercícios de massagem individuais, em dupla e coletivas em círculo. O objetivo seria promover a integração do grupo de forma descontraída e relaxada, enquanto os jogos de ritmos e dança estavam para explorar, posteriormente, sentidos de ritmo e de interpretação corpórea. Por fim, a sequência dos espelhos estimulou a observação própria e do outro, dando passo para o despertar sensorial e emocional em relação ao outro (SPOLIN, 2001; BOAL, 2008).
Vale ressaltar que o resultado da interação do grupo foi progressivo. Nos jogos de caminhadas, que têm como objetivo explorar as diversas formas de colocação do corpo no espaço físico, bases da primeira e segunda etapa do TO, os corpos se mantinham bem limitados. Na medida em que os comandos e exercícios variavam, como nos exercícios de massagem e nos jogos de ritmo e dança, os corpos tomavam formas não convencionais e admitiam movimentos não explorados anteriormente. Foi possível perceber que depois das duas primeiras aulas da oficina, os participantes começaram a manter seus corpos mais livres, mesmo em exercícios mais simples, demonstrando conforto com expressões corporais fora de um padrão cotidiano.
Posteriormente, no processo de finalização do primeiro mês do cronograma, o rapper paraibano Yakuza, do grupo Terroristas das Letras (TDL), foi convidado para conversar sobre o rap como estratégia política. Esse momento foi programado a partir do reconhecimento da penetração do movimento hip hop na comunidade, dando início a introdução da terceira e quarta etapa do TO, teatro como linguagem e teatro como discurso. O artista realizou uma apresentação sobre as origens do rap e como essa manifestação cultural se tornou um canal de expressão da juventude periférica e de denúncia das violências que atingem suas comunidades diariamente – como a própria violência institucionalizada pelo Estado, que reforça estereótipos negativos para determinados territórios.
Ainda nessa conversa, foi solicitado ao rapper que explicasse como se dá a construção de uma letra de rap. Como resultado, a conversa se transformou em uma grande roda de música, em que cada aluno produziu sua própria letra de rap de acordo com o desejo de expressão de cada um naquele momento. Na aula seguinte, a aluna mais velha (42 anos) pediu para recitar uma letra de rap por ela produzida e pensada. A letra da aluna destacava claramente o empoderamento das mulheres e o processo de aceitação da mulher nos diversos setores sociais.
Até então, tanto o rap como o teatro foram apresentadas como manifestações culturais que podem contribuir com o fomento ao pensamento crítico e à conscientização do posicionamento social dos indivíduos, bem como das violências e opressões que permeiam a realidade local. Por meio das artes, buscou-se construir um espaço coletivo de diálogo, de liberdade de expressão e de compartilhamento de experiências, com foco nas necessidades locais e nos jogos de representação (e não representação) de suas próprias comunidades.
Em seguida, foi dado início a implementação gradual da terceira e quarta etapa do TO, já que a primeira e a segunda etapa já tinham fortalecido o trabalho de expressão corporal e emocional que vinha sendo realizado na oficina no primeiro mês. Vale ressaltar que, nas duas primeiras etapas, observou-se a evolução progressiva dos participantes quanto ao conhecimento de suas próprias estruturas musculares e à descoberta de novas formas de expressão corporal. Já na terceira e quarta etapa foram realizados exercícios de dramatização e construção de cenas a partir de discussões sobre questões políticas e problemáticas sociais que cercavam os alunos. A estrutura das aulas foi pensada a partir da construção de cenas individuais, não verbalizadas, voltada para explorar como cada um dos participantes enxergava a comunidade e quais seriam os aspectos positivos e negativos dela. Ou seja, iniciou-se as aulas da oficina com os exercícios da primeira e segunda etapa como aquecimento (exercícios de caminhadas e de forma corporal) e, na segunda parte da aula, perguntava-se aos alunos que tipo de cenas eram recorrentes no seu dia. O resultado foi a dramatização de cenas de opressão, como bullying na escola, repressão policial e violência doméstica.
Vale destacar que, embora tenham sido compartilhadas experiências individuais, a dramatização das cenas era realizada coletivamente, pois tratavam de relações de violência entre pessoas – além de ser uma forma de aproximação dos demais participantes com a vivência do colega. Ao final de cada cena proposta em cada aula distinta do segundo mês da oficina, dava-se início ao fórum, no qual o público sugeria novas ações em relação contexto de violência; seguindo, aqui, a metodologia de TO, os espect-atores também podem intervir diretamente, substituindo algum dos personagens. Na avaliação no final desse exercício, percebe-se que a estrutura de opressão e as violências se manifestam diariamente para a população local, em particular sob a forma de violência policial contra adolescentes e jovens da comunidade – problemática que conectou a maior parte das experiências e as que incitaram maior número de intervenções na cena, assim como de propostas de transformação.
Evidencia-se aqui a capacidade do TO em estimular o pensamento crítico e a reflexão sobre ações coletivas em situações cotidianas de opressão, reconhecendo que os fenômenos políticos e sociais não afetam apenas um indivíduo ou grupo, mas sim a comunidade como um todo. Logo, a reconstrução das cenas visou ao desenvolvimento da conscientização individual, mas também buscou incentivar nos participantes o reconhecimento da autonomia comunitária.
Ao iniciar uma proposta de trabalho teatral é necessário esclarecer o objetivo do projeto e a importância do engajamento do grupo. Também é de vital importância, para sua eficiência, investigar o contexto sociocultural e as necessidades e interesses do público-alvo. Na reta final da oficina ocorreu certo distanciamento de alguns dos integrantes do grupo, o que repercutiu na continuidade do projeto e no resultado final.
Como consequência, apesar da adoção de um método de criação coletiva, baseado na montagem de cenas construídas a partir dos jogos desenvolvidos ao longo da oficina, não foi possível realizar o espetáculo – três participantes começaram a faltar durante o processo de ensaio e construção da peça e da quarta etapa do TO, o teatro como discurso. Um deles passou por procedimento médico e necessitou de repouso (atestado médico), já os outros dois tiveram que se distanciar por causa de responsabilidades externas relacionadas à comunidade. A realização do espetáculo e encerramento do cronograma do projeto também foi afetado pela redução do engajamento do grupo, principalmente no que diz respeito à assiduidade.
Entretanto, apesar dos obstáculos, o grupo conseguiu finalizar o roteiro do espetáculo. O roteiro apresentava dois palhaços que, de alguma forma, estavam sempre presentes nas cenas de opressão e violência. Ambos são personagens que buscam estratégias de resolução e transformação da situação – baseando-se nas experiências dos jogos. Por exemplo, em uma das cenas, sobre violência doméstica, na qual o marido agride a esposa, os dois palhaços enxergam no ofensor, ex-presidiário, uma possibilidade de desconstrução e por isso oferecem a ele a oportunidade de integrar o núcleo dos palhaços. Transformar o ofensor em um palhaço, em um artista, ilustra o processo de ressignificação de representações e símbolos presentes na comunidade e na sociedade em geral, demonstrando que o teatro pode ser uma ferramenta direcionada para a subversão das práticas sociais dominantes, que atribuem representações e simbologias de violência a determinados atores e localidades.
Considerações finais
A virada estética nas Relações Internacionais se constitui como uma forma de análise alternativa dos acontecimentos políticos mundiais, caracterizada pela análise das práticas de representações hegemônicas que marginalizam o conhecimento sensível e as expressões dos atores locais. A própria disciplina de Relações Internacionais assume um caráter performático, pautado em relações de poder assimétricas que reificam discursos dominantes sobre a compreensão, interpretação e representação (mimética) da realidade internacional – estruturada, de acordo com essas perspectivas, como naturalmente violenta e imutável.
Dessa forma, a abordagem estética permite questionar as representações convencionais, além de reivindicar canais para que os atores em condição de vulnerabilidade se tornem ativos e possam ocupar os espaços de representação e apresentar suas próprias necessidades e interesses, fundamentadas em suas próprias perspectivas sobre a realidade local, que não é estática e que é construída socialmente – reivindica-se que esses atores participem diretamente dessa construção intersubjetiva em diferentes níveis e esferas.
Com isso, é possível perceber que os estudos estéticos assumem um caráter político, no qual as artes surgem como um elemento que explora a configuração espaço-temporal dos jogos de representação, possibilitando questionar práticas dominantes e, para além da crítica, criar espaços para práticas alternativas. A partir da incorporação da dimensão sensível dos fenômenos políticos, é possível perceber e analisar o papel das artes como canais de comunicação e, reconhecidas suas funcionalidades sociais, de transformação das dinâmicas de relacionamento entre os indivíduos.
Nesse sentido, o Teatro do Oprimido e os jogos teatrais são concebidos nessa pesquisa como uma estratégia artística de percepção e transformação política a partir da criação de um espaço em que são compartilhadas percepções e sensações individuais, em que as narrativas que revestem os discursos hegemônicos e alternativos podem ser rearticuladas de forma dialógica e horizontal, contando com a participação direta dos atores locais. Para além disso, a desmecanização dos corpos e o exercício do pensamento sensível servem de estímulo para a autonomização dos indivíduos e para a construção do sentimento de pertencimento à coletividade.
Ao longo do desenvolvimento da oficina, dos debates sobre a realidade local e da construção do roteiro, foi possível perceber a capacidade do TO em transmitir aos participantes o potencial do teatro como linguagem, como canal de comunicação e expressão. Não obstante, embora tenha funcionado como estímulo à criticidade e à reflexão sobre intervenções nas violências cotidianas, os obstáculos impediram a conclusão do cronograma como tinha sido planejado.
Importa sublinhar que a cena cultural carece de incentivos do poder público, e seus agentes são comumente desencorajados a impulsionar iniciativas que pautem práticas não convencionais. Contudo, as manifestações artísticas populares, em particular aquelas pautadas pelo compromisso com a transformação social, resistem e se apresentam como uma alternativa às práticas de representação dominantes e estritamente mercadológicas, pois elas estão fundadas na participação direta dos indivíduos e constituem espaços para o debate sobre os interesses e necessidades locais. A oficina, apesar de sua curta duração e dos obstáculos, configura-se como uma tentativa de resgate da autonomia comunitária e do reconhecimento de suas potencialidades. Uma semente para a reflexão e a transformação que necessita de insumos para a geração de frutos.