O potencial transformador do Teatro do Oprimido

Entende-se até aqui que toda manifestação artística tem uma dimensão política. Política não como uma disputa pelo poder, ao menos em seu senso comum, mas sim como um espaço de disputa pelo papel de articulação, configuração e organização das experiências sensíveis que representarão o recorte espaço-temporal comum e incomum, visível e invisível. Ou seja, a arte toca a política pela sua capacidade de influenciar na “partilha do sensível” através de sua dimensão estética, como discutido na seção anterior. É nessa dimensão que o invisível se torna visível – e vice-versa (CARMO, 2018; MOUFFE, 2007; RANCIÈRE, 2010).

É a partir da construção dessa partilha que o Teatro do Oprimido (TO) se sustenta como uma dinâmica de comunicação sensorial; uma organização dos sentidos individuais em espaços coletivos. Com isso, o potencial transformador do TO se encontra no compartilhamento de experiências individuais, socializando narrativas e percepções plurais sobre os conflitos e opressões cotidianas como forma de repolitizar as múltiplas facetas da realidade social (BOAL, 2009; CARMO, 2018).

A metodologia do TO encontra-se enraizada na Estética do Oprimido, que, por sua vez, parte de uma ideia em que as classes oprimidas devem, a partir da prática artística, expressar seu ponto de vista sobre a realidade, fomentado a produção do conhecimento sensível para refletir sobre e ensaiar ações voltadas para a transformação das estruturas de opressão (BOAL, 2009; SANCTUM, 2001; FREIRE, 2005). Esse processo estético do TO está atrelado a duas formas de expressão de pensamentos que são inerentes a todo ser humano: o pensamento sensível e o pensamento simbólico. O pensamento sensível (estético, linguagem) representa as sensações, as emoções, o sentir; é a estética, a ciência do conhecimento sensível. O pensamento simbólico (noético, língua), por outro lado, é a comunicação racional simbolizada por palavras e é uma forma de pensamento não verbal – responsável pelo ato de conhecer e estruturar a dinâmica do conhecimento sensível. Logo, o ato de pensar com palavras tem gênese nas sensações (BOAL, 2009).

Dessa forma, “os sentidos têm sentido! não são meras sensações que se apagam com o tempo: têm sentido e direções!” (BOAL, 2009, p. 27), e a união dos dois pensamentos – sensível e simbólico – é a base para a relação entre memórias, ideias, emoções e sensações. Mesmo que o pensamento simbólico não seja expresso, o pensamento sensível está sempre ativo e configura um curso de ações que orienta a expressão do sujeito, em palavras ou não.

Nas representações políticas dominantes, a estética está baseada na especialização dos corpos, o que promove a homogeneização e esterilização do pensamento sensível e gera um sujeito apático às percepções dos fenômenos políticos sociais. Essa sociedade da especialização distancia os sujeitos de suas capacidades de sentir e de criar. Dessa forma, o pensamento sensível vai sendo anestesiado e o conhecimento sensível limitado às experiências proporcionadas pelo regime estético dominante; trata-se de uma forma de repressão e dominação dos corpos. Boal vai denominar esse processo de alienação estética e cultural de “invasão dos cérebros” (BOAL, 2009; SANCTUM, 2011).

A ideia de dominação que atravessa a invasão dos cérebros se assemelha ao pensamento de Marcuse (1977) acerca da repressão cultural das massas trabalhadoras. Marcuse aponta que a razão tecnológica – ou instrumental – é alimentada na sociedade moderna pela racionalidade política e econômica, que estabelece uma lógica de dominação eficiente e sutil sobre os indivíduos de acordo com argumentos técnicos, fundamentados no discurso de melhoria da qualidade de vida do trabalhador, em termos financeiros e materiais. A partir disso, a experiência estética é paradoxalmente anestesiada e o indivíduo passa a incorporar os valores transmitidos pelos atores dominantes – valores esses que regulam a exploração do trabalho ao estimular o fetiche pelo consumo, mesmo no campo das artes. Em contrapartida, torna-se necessário resgatar o lúdico e o prazer em criar nas massas oprimidas, como estratégia para harmonizar sua capacidade crítica e despertar uma dimensão estética, sensual, que nutra outras formas de prazer e que não esteja meramente baseada no consumo e na especialização dos corpos (RODRIGUES, 2015; MARCUSE, 1977).

Vale ressaltar que, para Marcuse (1977), a noção de prazer não está atrelada somente ao desejo sexual, mas sim às sensações que estão ligadas à satisfação das vontades humanas. Portanto, a ideia de dimensão sensual, apontada durante todo o texto, refere-se à dimensão sensorial dos sujeitos. Por conseguinte, Boal (2009) afirma que a dominação sensorial ocorre pela apropriação dos canais de comunicação estética mais potentes: som, imagem e palavra. O dramaturgo sugere, ainda, que o teatro é o encontro de todos esses canais e que a busca pelo estabelecimento de uma estética democrática permite a ebulição da criatividade e da autonomia nos indivíduos. Pelo TO e pela arte, de uma forma geral, é possível subverter as representações dominantes que os silenciam diariamente.

Diferentes manifestações artísticas são capazes de contribuir com a subversão das representações dominantes e, por meio da metodologia do TO, pela transformação do espectador (público, povo) – tido como passivo no sistema trágico aristotélico – em ator – sujeito ativo na construção e transformação da cena dramática. Boal vai chamar essa transformação de Poética do Oprimido: o espectador se torna espect-ator, agente autônomo capaz de exercitar e expressar seu pensamento sensível. Logo, o TO estimula a participação direta do público na cena e essa é a função basilar da Poética do Oprimido, que busca transferir essa lógica ao meio social, no qual o indivíduo se reconhece como agente ativo de transformação da própria realidade (BOAL, 1975; SOEIRO, 2012).

A conversão do espectador em ator pelo TO ocorre em quatro etapas que visam à desmecanização do corpo e o desenvolvimento do conhecimento sensível. A primeira etapa, conhecimento do corpo, é o contato inicial com o fenômeno teatral e consiste em uma sequência de exercícios que buscam a consciência da estrutura muscular, seus limites, suas deformações sociais e as suas possibilidades. O objetivo é sentir a alienação muscular imposta pela especialização dos corpos e de seus papéis sociais, desfazendo-se dessas estruturas musculares mecanizadas. É preciso desmontá-las, investigá-las e analisá-las, tornando os corpos capazes de explorar outras estruturas musculares em múltiplas máscaras sociais, ou seja, desenvolver a capacidade de interpretar diferentes papéis na sociedade (BOAL, 1975), para além da homogeneização e anestesia estética imposta pelas representações dominantes (BOAL, 2009).

A segunda etapa, tornar o corpo expressivo, consiste em uma sequência de jogos que prioriza a expressão para além das formas convencionais, como a expressão verbal. O objetivo é desenvolver a capacidade expressiva do corpo, já que estimulamos diariamente a comunicação verbal em detrimento da competência de comunicação corporal (BOAL, 1975). Segundo Spolin (1963), fisicalização é a forma teatral em um nível corporal e não verbal. Seria exatamente uma experiência sensual concreta que nutre a liberdade de expressão física e sensorial, isto é, a linguagem física mantém o espect-ator em um relacionamento com o mundo sensível, ao mesmo tempo que promove e encoraja o processo de desmecanização do corpo material, princípio para a educação estética.

A terceira etapa da metodologia do TO, teatro como linguagem, representa o começo da prática do teatro como linguagem, sintetizado por um processo progressivo de participação ativa e direta do espectador no espetáculo. Enquanto as duas etapas anteriores focam na preparação e conscientização corporal, a terceira foca no tema a ser discutido e estimula a ação do espectador com diferentes graus de intervenção na cena, modificando o texto e a forma de interpretá-lo; ou seja, a quarta parede do sistema teatral é demolida. Por fim, a quarta etapa, teatro como discurso, é o espetáculo protagonizado pela camada popular, pelos oprimidos, que através de uma educação dialógica e horizontal buscam transformar as contradições sociais e os fenômenos políticos (BOAL, 1975; FREIRE, 2005).

Na perspectiva brechtiana, a estética é o canal de reorganização social em direção à educação político-estética. A teoria do teatro didático desenvolvida por esse dramaturgo fundamenta-se no método pedagógico chamado de Peça Didática e busca a educação político-estética através dos jogos teatrais que estimulam a capacidade de identificação dos indivíduos, bem como de ampliação de seus repertórios de ação. Aqui, a produção artística é um processo coletivo configurado pela crítica aos discursos hegemônicos. A Peça Didática de Brecht, portanto, tem por objetivo reproduzir gestos, ações e discursos que estão presentes na realidade, estimulando os indivíduos a associarem essas representações à sua existência individual no meio social e, ao expor as contradições sociais, buscar por mudanças sociais. Nesse contexto, o estético é reconhecido e reivindicado não só como uma forma de fazer política, mas também como um elemento fundamental do processo de aprendizagem baseado em práticas pedagógicas críticas (KOUDELA, 2007).

A diferença entre esses modelos teatrais, a Peça Didática e o Teatro do Oprimido, é que o primeiro se preocupa em criar um teatro que não precisa de público, onde os atores ensinam a si mesmo através de estratégias didáticas e da própria catarse do fazer teatral. Já o TO insere o espectador nesse processo de conscientização e de ação, através de jogos teatrais que fomentam a transformação do ator em espect-ator (KOUDELA, 1999; BOAL, 1975).

Ao investigar o teatro brechtiano (teatro como ferramenta de educação política), compreende-se que os processos de transformação política e democratização devem ser incorporados na análise das relações sociais. A essência desses processos se encontra, também, nos jogos teatrais, e isso ocorre porque os jogos são um sistema orgânico aberto, gerido por regras firmadas coletivamente em um espaço lúdico de compartilhamento de percepções e expressões, descartando estruturas hierárquicas e promovendo a autonomia dos sujeitos. Os jogos teatrais são uma atividade lúdica baseada no exercício sensório-motor de representação da realidade. Assim como na sociedade, os jogos teatrais possuem regras, logo, para participar tem que conhecê-las – somente conhecendo-as é possível questioná-las, somente participando é possível transformá-las (BOAL, 1975; KOUDELA, 1999).

Os jogos teatrais podem ser caracterizados como uma experiência orgânica entre o nível intelectual, intuitivo e físico. É no nível intuitivo que os problemas e as discussões colocados são percebidos e explorados, requerendo respostas imediatas e criativas perante à situação e levando em consideração as regras estabelecidas (SPOLIN, 1963). No TO, os jogos são baseados no diálogo entre os participantes, que desenvolvem a expressividade do corpo como receptores e emissores de mensagens e que, portanto, devem estar “alfabetizados” para se comunicar através desse canal.

Podemos destacar aqui cinco categorias de jogo que buscam desfazer as amarras da repressão cultural, desmistificar as máscaras sociais e perceber a realidade social e política que vive cada sujeito: 1) sentir tudo que se toca; 2) escutar tudo que se ouve; 3) desenvolver os múltiplos sentidos; 4) ver tudo que se olha; 5) fortalecer a memória emotiva. Todas elas são caracterizadas por jogos que estimulam as estruturas musculares, sensoriais e imaginárias, acessando a dimensão sensual dos indivíduos (BOAL, 2008). Nesse sentido, nos jogos de TO, o espect-ator desenvolve uma estrutura dialética de interpretação da realidade baseada na interconexão entre uma vontade concreta (o querer) e uma ideia. Ou seja, o indivíduo tem uma ideia e tem vontade de concretizá-la, e, por meio do TO, o espect-ator ensaia a realização prática de suas vontades, expressando suas emoções e reivindicando seu papel de protagonista da cena teatral (e social) (CARMO, 2018).

Este momento é entendido enquanto ensaio para a transformação social, conferindo esta capacidade para o espectador transgredir as convenções teatrais, intervindo diretamente no desenrolar dos acontecimentos, tornando-se assim protagonista da ação dramática, a que Boal chamaria metaxis (CARMO, 2018, p. 589).

Faz-se necessário apresentar, nesse contexto, o conceito de ascese como um processo que surge nos jogos e que marca a transição entre a dimensão individual para a dimensão social. A ascese expõe as forças escondidas na base de cada fenômeno que aparece em cena, no qual as experiências particulares ganham relevância social e política. Essas experiências são compartilhadas e através do trabalho coletivo são ressignificadas e repolitizadas (BOAL, 2009; CARMO, 2018).

O debate sobre a articulação entre as dimensões política e estética do teatro enquanto mecanismo de formação cidadã e de desenvolvimento de estratégias para ações coletivas converge com a agenda de pesquisa em cultura de paz, em particular, ao posicionar os indivíduos e a esfera local/comunitária como elementos centrais na transformação da realidade. Dentro dessa lógica, sustenta-se a ideia de que as artes são estratégias eficientes para a articulação política e para a construção das capacidades locais e que, portanto, podem contribuir com a construção da paz ao transformar a percepção das pessoas sobre o mundo ao redor delas, sobre suas próprias identidades e funções sociais, bem como sobre as dinâmicas de relacionamento com os outros. Para exemplificar, apresentamos algumas iniciativas de atores locais que utilizam intencionalmente e estrategicamente as manifestações artísticas como elementos de construção da paz (SHANK; SCHIRCH, 2008).

Em Accra, capital de Gana, artistas e ativistas usam o hip-hop como uma forma de organizar a juventude e promover a conscientização sobre questões como globalização, fome, pobreza, corrupção, AIDS e movimento negro. O movimento de hip-hop chamado Hiplife 23 combina elementos de hip-hop e da cultura local para expor a crise da pobreza no país, a corrupção, a violação de mulheres, o abuso infantil e a injustiça social. Já na Universidade Wisconsin-Madison, localizada no estado de Madison (EUA), a arte também é utilizada para provocar mudanças sociais. Nesse contexto, trabalham-se as expressões corporais como canais de construção da paz já que as artes performáticas, como a dança, utilizam o movimento corporal como meio criativo de explorar relacionamentos. Na aula de Terapia de Movimento, ministrada pelo professor Rena Kornblum, a dança é apresentada como uma linguagem ignorada pelos educadores da academia convencional e que pode ser instrumentalizada para a conscientização sobre formas não verbais e não violentas de comunicação (SHANK; SCHIRCH, 2008).

O trabalho realizado pelo Interactive Resource Center (IRC), em Lahore (Paquistão), também é um exemplo. No IRC, o teatro se constitui como uma ferramenta de capacitação e autonomização das comunidades locais. Esse centro, formado por voluntários, utiliza as técnicas de Teatro do Oprimido para facilitar o debate sobre questões sociais e estruturas de opressão e tem o objetivo de conscientizar as populações marginalizadas em relação aos seus direitos básicos. Conforme relatório produzido pela ActionAid, o trabalho teatral na construção da paz no Paquistão pode ser considerado um caso bem-sucedido de utilização da arte como estratégia de fomento ao debate público sobre os casos de violência no país.

Na Paraíba, no Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), a disciplina de Arte e Estética nas Relações Internacionais, ministrada pelo professor Paulo Kuhlmann, introduz as artes e a dimensão estética como formas alternativas para a compreensão, interpretação e representação da realidade política internacional, assim como dos processos de construção da paz. Para além do debate teórico, são realizadas atividades práticas e jogos lúdicos na disciplina com o intuito de estimular as capacidades sensoriais dos estudantes para analisarem os fenômenos políticos mundiais.

Colocados esses exemplos, a próxima seção será dedicada à descrição e à análise de oficina de Teatro do Oprimido, realizada em 2018 no Centro de Referência da Juventude do Rangel (CRJRangel), instituição localizada no município de João Pessoa, Paraíba. Trata-se de uma pesquisa-ação na qual se busca compreender, a partir do quadro teórico-analítico apresentado até o momento, o potencial político e estético do teatro na transformação social.

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