A arte e a dimensão estética das Relações Internacionais

Criar é fazer existir, dar origem, criar é arte; é descobrir um universo de possibilidades em meio a uma realidade íntima entre o Eu (interno) e o mundo (externo). A criatividade propicia o surgimento de novas formas de relacionamento entre o ser humano e a natureza. Ao saber que podia colher elementos da natureza, transformá-los, torná-los funcionais, o ser humano se descobre artista. Logo, a arte é uma forma de expressão da realidade e dessas novas dinâmicas da relação humana com a natureza. Esse olhar sobre a arte e sobre a “consciência criadora” (FISCHER, 1987, p.28) introduz uma dimensão estética ao processo de compreensão, interpretação e representação da realidade. Quando pensado no campo das Relações Internacionais, a estética se configura como uma forma de

repensar fenômenos políticos concebidos como dados e não problemáticos e identificar sua origem, natureza, e implicações, engajando-se em práticas de representação de formas criativas que permitam desafiar as formas de pensamento e de representação do político e focar como elas são internalizadas em nossas mentes, hábitos e consciência coletiva (JESUS; TÉLLEZ, 2014, p. 60).

A arte expõe essa dimensão estética, uma das variadas experiências que constituem a existência humana. A estética, etimologicamente, está conectada ao sensível, ao emocional; trata-se de uma lógica na qual o ser humano percebe e conhece o mundo através dos seus sentidos, da corporeidade. Dessa forma, a arte está alicerçada – e também se nutre – na relação entre o ser humano e o seu meio (FISCHER, 1987, p. 12; BOAL, 2009).

A estética assume um caráter político pela partilha do sensível, pela distribuição (intersubjetiva) das identidades e das funções de cada ator na sociedade, de acordo com os significados que fundamentam as práticas de representação e ditam como se dará a configuração espaço-temporal dos sujeitos/objetos em determinado contexto (RANCIÈRE, 2004). Isto é, há práticas de representação dominantes que determinam como os atores se enquadram em determinado contexto, por exemplo, há grupos que são incumbidos de determinada função social e que são impedidos de explorar alternativas, como os escravos condicionados à exploração e servidão, e que não tem o direito à participação política. Nesse sentido, a partilha do sensível delineia como os corpos se ajustam ao recorte espaço-temporal, constituindo-se como um espaço de disputa política, onde os grupos dominantes buscam impor uma lógica que os privilegia, enquanto cabe aos oprimidos subverterem a ordem vigente (BOAL, 2009; RANCIÈRE, 2004).

Nota-se que a arte tem essa capacidade de (re)configurar as noções de espaço-tempo, contribuindo com a tentativa de redesenhar seu território comum, tanto material quanto representacional, assim, o potencial político da arte consiste em representar a realidade a partir de perspectivas específicas, expondo as relações de poder que permeiam as estruturas da sociedade, bem como seus conflitos e as identidades de diversos grupos. De acordo com Rancière (2004),

o que liga a prática da arte a uma questão do comum é a constituição, tanto material quanto simbólica, de certo tipo de espaço-tempo, de uma suspensão em relação às formas da experiência sensível, […] pelo modo como recorta esse tempo e povoa esse espaço (RANCIÈRE, 2004, p. 20).

A estética é, então, uma forma de fazer política, em que o sujeito está disposto em uma dimensão do conhecimento sensível, da criatividade, da vida sensual, da imaginação. Tanto a estética como a política são bases da construção da subjetividade dos indivíduos, de suas paixões, sensações e compreensões, assim como de suas motivações em manter ou subverter o status quo (MARCUSE, 1977). Portanto, a “partilha do sensível” possibilita a criação e a recriação de símbolos, conceitos, representações e identidades, assumindo um importante papel nos fenômenos políticos e sociais, na transformação da realidade ou na conservação das estruturas de opressão. Ao lançar luz sobre essas questões, a abordagem estética expõe uma dimensão política que auxilia em análises, do nível local ao internacional (JESUS; TÉLLEZ, 2014).

Os conceitos e as representações nas Relações Internacionais são performáticos, fruto de entendimentos intersubjetivos que produzem sistemas de símbolos, perpetuados por uma lógica mimética de reprodução da realidade internacional “como ela é”, baseada em uma concepção de natureza humana violenta e imutável. Essa reprodução mimética dos discursos dominantes visa anular as possibilidades de transformação política e social. Não obstante, as abordagens estéticas permitem compreender os conceitos e representações convencionais e, do mesmo modo, investigar perspectivas alternativas (JESUS; TÉLLEZ, 2014).

Nesse sentido, os estudos sobre a estética nas RI reivindicam uma pluralidade de perspectivas sobre a realidade e de fundações para a produção de conhecimento, não por uma concepção racionalista estritamente científica, mas multidimensional, incorporando diferentes aspectos da experiência humana – o resgate da corporeidade e sensualidade rompe com a limitação do conhecimento como mero exercício intelectual/mental (GÓMEZ MORENO, 2015; GÓMEZ MORENO; MIGNOLO, 2012). Nos estudos sobre a estética nas Relações Internacionais, destaca-se o poder sensível dos indivíduos e das comunidades locais na produção de conhecimento e na configuração dos fenômenos políticos e sociais, situando suas práticas de representação e os valores intersubjetivos que as sustentam – ou seja, verifica-se se são valores transmitidos pelos atores dominantes ou se partem de sensibilidades locais. Reitera-se aqui que há uma lacuna entre representações e sujeitos/objetos representados, essa lacuna é um espaço de manobra política, em que os grupos disputam o papel de estabelecer as práticas de representação, de acordo com suas sensibilidades, seus valores, suas interpretações sobre a realidade sociocultural (BLEIKER, 2001; SHEPHERD, 2017).

É a partir disso, que se nota uma aproximação dos estudos estéticos nas RI com o conceito sensual do sentir de Marcuse (1977). Para o autor, o sentido do prazer não está interligado ao desejo sexual, mas sim às sensações que estão ligadas à satisfação das vontades humanas, dos anseios do indivíduo e da construção dos seus sentimentos de como ser e estar no mundo. Portanto, a ideia de dimensão sensual, apontada durante todo o texto, se refere à dimensão sensorial dos sujeitos.

Na dimensão epistemológica das abordagens estéticas, expandem-se os limites de análises para além do determinismo que pressupõe uma natureza humana e social imutável, reconhecendo fundações alternativas para apreender a realidade com signos e valores que não partem necessariamente dos atores dominantes (HOZIC, 2017). Compreende-se, então, que as abordagens positivistas das Relações Internacionais marginalizam a relação política e sensível entre o representado e sua representação, enquanto as abordagens estéticas desconstroem as narrativas dominantes e restauram as agências e a visibilidade dos atores locais, dos sujeitos que também sentem e pensam, e que são capazes de instigar a transformação política (STEELE, 2017).

Para ilustrar esse debate, podemos analisar a performance estadunidense nos jogos de representação da política internacional, baseada em uma estética de insegurança, em particular após o 11 de setembro, construindo estereótipos de “ameaças” a partir do discurso de guerra ao terror. A reprodução mimética desse discurso provocou uma espécie de histeria coletiva internacional contra o “terrorismo”, personificado na figura do não ocidental. Em comparação, as fotos das torturas contra os presidiários em Abu Ghraib não tiveram o mesmo efeito que as repetidas imagens dos aviões se chocando contra o World Trade Center (Nova Iorque), em razão do impacto não só material, mas também estético que constitui o ataque a um Estado considerado, na época, uma potência hegemônica. Ou seja, o discurso de insegurança dos EUA se sobressai, de forma homogeneizante, em detrimento das perspectivas alternativas sobre o mesmo evento (STEELE, 2017).

A abordagem estética expõe a relação de poder que compõe os significantes/significados, descentralizando essas representações estéticas dominantes e reivindicando a emancipação dos indivíduos e de seus discursos marginalizados. Ao conectar-se com a questão da emancipação, podemos incorporar o paradigma freiriano da libertação humana, fundamentada na busca pelo direito de “existir” e de ser percebido como existente em um sistema de representações dominantes e opressoras. Para isso, é preciso percorrer um caminho de autorreflexão dos contextos socioculturais específicos, que dão origem às divergentes percepções sobre a realidade (FREIRE, 2005). Conscientizar-se sobre a condição de marginalização em meio às representações dominantes é um primeiro passo para a libertação dos oprimidos e para a transformação política.

Para compreendermos como a dimensão estética e política da arte se articulam ao seu potencial transformador, recorremos aqui ao trabalho da teatróloga e socióloga Frederiqué Lecomte, que utiliza o teatro como ferramenta estratégica de construção da paz em zonas de conflitos, como em Burundi, país africano marcado por violentos processos, principalmente em consequência do histórico de colonização e do genocídio de 1994 em Ruanda, país vizinho.

Por meio do projeto Théâtre & Réconciliation3, Lecomte estimula a transformação dos conflitos entre os Hutus e os Tutsis, engajando os grupos étnicos em processos reconciliatórios através dos jogos teatrais. Sua abordagem se baseia no Humor Burlesco, caracterizado pela apresentação das próprias imperfeições dos indivíduos para causar um sentimento de desestabilização. A partir da sensação de constrangimento, o sujeito percebe a gravidade e busca alternativas criativas para suportar/superar o trauma. Assim, os indivíduos procuram visualizar a realidade traumatizada e buscar alternativas através de expressões teatrais do absurdo. O palco se torna uma experiência catártica, voltada para o estímulo ao pensamento crítico e à união comunitária como forma de confrontar e transformar a realidade local (LECOMTÉ, 2015).

Uma outra análise estética de como o teatro pode ser empregado como instrumento de mudança social é o Theatre for Development (TfD), projeto idealizado por Michael Etherton e que consistiu em uma série de oficinas teatrais para o desenvolvimento e garantia dos direitos das crianças. O projeto se estendeu por várias regiões do Sul da Ásia – Índia, Bangladesh, Paquistão, Sri Lanka e Nepal – e criou espaços cênicos onde as crianças expressavam, para as autoridades locais, suas percepções e sensações em relação às violências sofridas dentro da comunidade. A partir desse momento, foi estabelecido o diálogo entre os atores locais, com foco na garantia dos direitos dos jovens e das crianças oprimidas. Os impactos do TfD foram positivos especialmente no que diz respeito às questões identitárias, ao fortalecimento do protagonismo juvenil e à reconfiguração das dinâmicas de relacionamento entre os grupos vulneráveis e a própria comunidade (BOON; PLASTOW, 2004).

Théâtre & Réconciliation e Theatre for Development ilustram o uso do teatro enquanto expressão artística que é estética e politicamente impulsionada como fonte de transformações. Os insights alternativos sobre os fenômenos políticos que foram gerados nesses projetos são representações não convencionais da resolução de conflitos, baseando-se na criatividade, sensibilidade, intuição, mas sobretudo no interesse e nas necessidades dos atores locais.

 

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